terça-feira, 23 de agosto de 2011

DE DENTRO DA BOCA

(No palco, uma cadeira, parecida com as de dentista, uma mulher de aproximadamente trinta anos com um jaleco branco e , sentado, de boca aberta, um homem de uns cinquenta anos).

A terapeuta: Abra a boca. Logo. Eu não tenho tempo a perder. Cada minuto significa a possibilidade de descobrirmos juntos bloqueios que você traz dentro de você desde que nasceu.

O paciente: Afinal, você é terapeuta ou é dentista?

A terapeuta (enérgica, um tanto irritada): É claro que eu sou terapeuta.

O paciente: Aqui não tem divã, mas cadeira de dentista. Não vim ao lugar errado? Eu sempre quis fazer terapia, mas com divã. Sem divã não tem clima. (Faz que vai levantar da cadeira). É como ir a um restaurante e lhe servirem a comida em uma calota ou em uma peneira.

A terapeuta: (enérgica). Sente-se. Como é exagerado o meu cliente. Todos estranham na primeira consulta. Depois se acostumam. Faz parte do jogo. Abra a boca.

O paciente (abre a boca o máximo que consegue).

A terapeuta: Abra mais. (coloca a mão com luva dentro da boca do paciente).

O paciente: Assim vai me dar uma cãibra. E que jogo é esse? Quem ganha esse jogo? E quem perde? Eu estou pagando. E não é pouco. Isso significa que eu perco.

A terapeuta: Muito bom. O meu paciente tem cãibra no maxilar. Algum trauma que traz da infância. E reclama, tem voz. (grita): VOZ.

O paciente: É problema do maxilar mesmo. Sofri um acidente quando tinha dezenove anos e quebrei o maxilar. Nem tudo é psicológico. Se eu fraturo uma perna e venho aqui depois de algum tempo e reclamo de dor, você vai também me dizer que é psicológico?

A terapeuta: Não tente simplificar as coisas. Quase todas as dores e cãibras têm um fundo psicológico. Vou começar a extrair pela sua boca a maioria dos seus traumas. Olha, você está com um dente cariado, mas isso não é da minha alçada. Eu sou TERAPEUTA. Mantenha a boca aberta.

O paciente: (Fecha a boca) o que você quer extrair de mim?

A terapeuta: Tudo que está bloqueado. (olha dentro da boca). Você respira com dificuldade. Nunca deve ter se revoltado contra os seus pais quando eles lhe disseram: -Cala a boca. Nunca deve ter falado mais alto com o seu patrão.

O paciente: Eu quero falar. É a minha vez.

A terapeuta: (ordena): Cala a boca.

O paciente: Não calo. Quem é você para me mandar calar a boca? Não é meu pai nem minha mãe.

A terapeuta: Confessou. Estamos indo bem. Avançando já na primeira sessão. (olha para a plateia). Foi reprimido na infância. Sempre que fazia uma pergunta, era podado. Não é verdade? Tem coragem de me desmentir?

O paciente: Posso lhe fazer uma pergunta?

A terapeuta: Não. Aqui quem pergunta sou eu. Abra a boca.

O paciente: ( Abre a boca).

A terapeuta(retira algo da boca do cliente): O que é isso?

O paciente: Um fio.

A terapeuta: Não é um fio comum. Um fio dental. É um fio mental.

O paciente: Isso não existe. A senhora está brincando comigo. Fio mental. Só faltava essa? Um fio que me liga aos meus traumas. Que terapeuta original. Pelo menos isso a senhora é.

A terapeuta: Agora me chamou de senhora. Por que esse respeito repentino? Você não me disse que eu não sou nem seu pai nem sua mãe? Reaja. (Abre a boca do paciente e coloca um dedo dentro dela).

(O paciente morde o seu dedo).

A terapeuta: Por que você fez isso? Você não tem direito de me morder.

O paciente: Não falou para eu reagir? Essa fala é perigosa. Nunca diga a um paciente para ele reagir. Se eu estivesse armado, e se eu fosse violento?

A terapeuta: A minha criança está aprendendo. Eu sei lidar com os meus pacientes. E conheço cada um deles já na primeira sessão. Eu nunca falaria para um psicopata reagir. Você não é um deles.

O paciente: Nunca se sabe. (irritado) E eu não sou a sua criança. Sou adulto. Um cara maduro. Consciente de suas responsabilidades. Sou um homem sério.

A terapeuta: A minha criança está reagindo. Diz que não é minha criança. (Para ele) Prova então que não é minha criança.

O paciente: Eu sou um adulto estressado que veio fazer uma consulta para vencer essas angústias naturais nesses tempos tão malucos. Não quero ir a fundo, à infância, mexer com buracos já bem tampados.

A terapeuta: Eles fedem mesmo tampados. E não estão tão bem tampados como você imagina.. Abra a boca. (Olha dentro dela): Você tem mil fossas escuras dentro de você que precisam ser eliminadas, não tampadas.

O paciente (levanta-se): Minha terapeuta fala bonito. É culta. Isso para justificar os 500 reais que eu pago por sessão. Fossas escuras, uma porra. Se eu tenho, você tem também. Você não é melhor nem mais normal do que eu. (pergunta para a plateia). Será que ela é normal? Não sei onde eu li. Alguém disse que de perto ninguém é normal. E ser normal também é o ó.

A terapeuta: Magnífico. Não perdeu a ironia. Quem não consegue ser irônico é porque está morto. O meu paciente está vivo. Eu também estou viva. Nem quero ser normal. A questão não é essa. O importante é se sentir bem, menos angustiado, menos estressado.

O paciente: (concluindo): Se eu estivesse morto, não viria aqui. Os mortos não fazem terapia. A não ser que seja terapia espírita.

A terapeuta: Sente-se.

(O paciente senta-se na cadeira).

A terapeuta: Obediente o meu menino.

O paciente: Fui obediente até os dez anos. Aos 11, me revoltei, mas voltei a ser obediente aos 20 quando me casei. A obediência leva ao comodismo. Nesse país há muitos obedientes. Pagamos altíssimos impostos e na hora que deveria ser de desobedecer, todos pagam como carneirinhos que estivessem próximos da tosquia ou do sacrifício.

A terapeuta: Estamos evoluindo. Abra a boca.

O paciente (levanta-se e ordena): -Fecha a boca. Agora quem fala sou eu. Em casa, só a minha mulher fala. E os meus filhos. No trabalho, sou um mero burocrata. Não tenho poder. Eu vou falar tudo o que eu sinto. Ninguém me segura.

A terapeuta: O que mais te oprime?

O paciente: Não poder ser quem eu sou. Nas reuniões, só digo sim, senhor ao meu chefe. Recebo até que um bom salário, mas não tenho voz. (grita)Eu não tenho voz.

A terapeuta: CALE-SE.

O paciente: Eu não me calo. Quem é você para me dar ordens? É o meu chefe? É só minha terapeuta. SENTE-SE.

(A terapeuta assustada senta-se na cadeira).

ABRA A BOCA. Agora eu é que mando. (tira uma corda da pasta e amarra a terapeuta).

Você é o meu chefe que perdeu a pose e o poder. Ou melhor ainda, você não passa de uma impostora. Papéis invertidos. Eu sou o que está por cima agora. Abra a boca, doutora. (Enfia a mão na sua boca). Que boca úmida. Que boca mais nervosa. Treme sem parar. Até parece que eu sou o terapeuta. Faz de conta que a senhora é minha paciente, quero dizer, você. Como foi a sua infância?

Terapeuta: Foi terrível. (Fala tensa). Fui rejeitada pelos meus pais biológicos. E os pais que me adotaram me tratavam com a máxima frieza.

Paciente: Fale mais, desembucha. Solta tudo.

Terapeuta: Como vou soltar tudo se estou presa? Você me amarrou. E há uma outra prisão que eu não sabia que estava em mim. Está vendo o que você fez? Está me desestruturando. Eu é que sou a terapeuta. Não você. Os meus fantasmas estavam muito bem guardados e você os libertou. E agora?

Paciente: Eu é que pergunto. Parecia tão segura. Querendo extrair o meu íntimo. Toda invasão é perigosa e pode provocar consequências imprevisíveis. Abra a boca.

Terapeuta: Não consigo. Estou travada.

Paciente (ironicamente): É só destravar. Fale mais da sua família, aquela que a adotou. Fale mais, fale mais.

Terapeuta: O meu irmão adotivo tentou me matar, mas eu me vinguei. Coloquei pimenta no sorvete dele.

Paciente: Que crueldade. Que perversidade.

(A terapeuta, de boca aberta, está assustada).

Terapeuta: Você está fora de controle.

Paciente: Agora que eu assumi o controle, você me diz que eu estou fora de controle.
Agora é que eu estou no controle. Prendi aquela que tentou extrair o mais profundo de mim. Conseguiu, mas com consequências. Não se abre um baú velho, que ficou fechado décadas, imaginando que não haja nenhuma aranha caranguejeira ou uma cobra escondida. Todos os bichos guardados, aprisionados, só esperam uma oportunidade para que venham à tona. Eu tenho um zoológico dentro. E você também.
(Começa a declamar):
Cobras, lagartos, serpentes, tigres, elefantes, hipopótamos, rinocerontes, além dos monstros, mulas sem cabeça, dragões, seres imaginários de dez cabeças. Todos temos bichos guardados. Centenas, milhares, milhões. (olha para uma determinada pessoa na plateia).
Você não?

(Ele ordena): Abra a boca.

A Terapeuta: Você está quebrando uma ordem de forma perigosa. Quem deve abrir a boca é você, mas sentado aqui. Não eu. Se eu lhe contar o que foi a minha vida, ficarei totalmente sem força, desprotegida. E sem a minha capa protetora não poderei mais ser a terapeuta. E eu só consigo ser isso. (quase chora): Eu não sirvo para trabalhar em um restaurante como chef, garçonete ou balconista. Eu não sirvo para isso. Só sei ser terapeuta.

Paciente: Ninguém é só terapeuta, ou só engenheiro, ou só funcionário de um escritório, bancário, dentista, médico. Antes de tudo, somos pessoas.

Terapeuta: Fui eu que fiz você descobrir isso.

Paciente: Não, fui eu. Eu é que escolhi vir aqui. Eu é que procurei você. Não foi você que me procurou.

Terapeuta: Me solte agora.

Paciente: Você está solta.

Terapeuta: Você me amarrou.

Paciente (com energia): Mentira. Os terapeutas geralmente são muito mais amarrados e complicados do que os clientes porque carregam consigo histórias que não são as deles e não conseguem processá-las.

Terapeuta: Você está querendo mesmo assumir o meu lugar. Impostor. Invasor. Você já pagou a consulta. Pode ir embora. Eu lhe dou alta.

Paciente: Que maravilha. Uma sessão milagrosa. Mas, se funcionou, fui eu que me curei. Abra a boca.
Terapeuta: Não abro. (olha para o relógio na parede): A sessão terminou. Está na hora do novo paciente chegar.
Paciente( desamarra a terapeuta):Desculpe, eu pensei que ainda tínhamos mais alguns minutos.
Terapeuta ( A terapeuta levanta da cadeira e se recompõe) (cumprimenta-o): Até a próxima sessão.
Paciente: (cumprimenta-a): Até a próxima. (Sai e a terapeuta senta-se na cadeira para relaxar).

(Peça escrita de 23 de agosto a 5 de setembro).

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A CAPIVARA

(A peça começa com um barulho de colisão. No fundo da cena, há uma escultura de papelão simbolizando uma capivara que acabou de ser atropelada. Um homem sai do carro em destroços, ainda assustado, verificando os ferimentos.)

O homem: Uma capivara? Pensei que tivesse atropelado um homem. De onde ela surgiu? Eu estava no máximo a 100 por hora. Dentro do limite. E agora? Como vou avisar a minha mulher que eu vou chegar em casa atrasado? E os meus filhos? Perdi o celular. Estou vivo. Nem acredito.

(Aparece um guarda rodoviário em uma moto).

O guarda: O sr. está multado.

O homem: Eu não tive culpa.

O guarda: E ainda terá que responder por ter matado um animal silvestre protegido pelo Ibama.

O homem: Foi a capivara que entrou na minha frente. Tentei frear, mas capotei. Em vez de o sr. perguntar se eu estou bem, quer proteger a capivara?

O guarda: Aqui é uma área com muitas capivaras. O sr. deveria saber disso e tomar mais cuidado.

O homem: Eu sei, mas como poderia prever que ela iria passar na minha frente? O meu carro não tem radar anticapivara.

O guarda: Mas deveria. Eu posso prendê-lo por desacato à autoridade.

(Uma nova colisão. Aparece mais uma capivara atropelada no meio do palco).

O guarda: O motorista fugiu. (Ao homem): Você anotou a placa? Mais uma capivara inocente morta.

O homem: Essas capivaras são um perigo.

O guarda: Vocês, motoristas, é que são um perigo. Em primeiro lugar, as capivaras.

O homem: Uma família inteira morreu no Paraná após atropelar uma capivara. Eram todos amigos meus. Sete pessoas morreram entre Araras e Rio Claro em janeiro deste ano pelo mesmo motivo. Deveriam matar um certo número de capivaras para evitar mais catástrofes e ainda serviriam como alimento para as pessoas carentes.

O guarda: Que absurdo. Comer capivaras? O sr. comeria um ser humano para matar a sua fome?

O homem: Capivara não é gente.

O guarda: Mas é como se fosse.

O homem: O sr. não come carne de vaca, porco, frango, peixe?

O guarda: É claro, mas capivara não. Capivara é animal silvestre.

O homem: Mas ninguém pensou nisso quando a população aumentou vertiginosamente. O senhor sabia, com todo respeito, que há milhares de capivaras só aqui na região?

O guarda: Por isso mesmo é que merecem proteção.

O homem: E quem protege? O sr. não está me entendendo.

O guarda: Está me chamando de burro, ignorante?

O homem: Não, não é isso.

O guarda: Quase todo mundo quer pôr culpa nas capivaras. As capivaras são animais irracionais. Vocês, motoristas, animais racionais , deveriam pensar antes de atropelá-las.

O homem: Pensar, seu guarda? Se elas surgem de repente do mato, no escuro. Por melhor motorista que eu seja, é impossível.

O guarda: Isso é desculpa.

(Várias colisões acontecem quase simultaneamente, dez capivaras são lançadas ao palco, duas delas caem próximo à plateia).

O homem: Devia ser uma manada.

O guarda: E agora? Não saia daqui. Eu vou providenciar o fechamento do trânsito para evitar matança ainda maior.

(Chega um repórter com uma câmera)

O repórter: Foi o sr. que atropelou todas essas capivaras?

O homem: Eu atropelei uma só. A população de capivaras aumentou muito. Deveria haver um controle. Fora o risco da febre maculosa.

(Um rapaz com um cartaz em que se lê: ASSASSINOS DE CAPIVARA interrompe o homem e começa a falar para a câmera):

Deveriam proibir a circulação de veículos nessa rodovia e em todas as outras em que há capivaras. (voltando-se para o homem): Foi ele que matou todas as capivaras.

(Ouve-se um coro vindo do fundo do palco):

Vamos salvar as capivaras.

Fora, motoristas assassinos.

Fora , civilização dos veículos poluidores.

Vamos salvar as capivaras.

(Dezenas de capivaras de papelão, após uma sequência de colisões, caem sobre o repórter, o ativista, o homem e o guarda que retornou à cena. Somem todos os personagens soterrados pelas capivaras).


(Peça escrita no dia 22-8-2011)

sábado, 20 de agosto de 2011

SOBRE A SOMBRA

Os personagens: um homem e uma mulher, ambos com cerca de quarenta anos, entram no palco quase totalmente escuro ao mesmo tempo, de direções opostas , e se chocam no meio da cena. Ambos caem e em câmara lenta se levantam com uma certa dificuldade, parecendo não compreender o que aconteceu. As luzes se acendem parcialmente, principalmente no centro da cena.)

Ele (um tanto confuso): Você me derrubou.

Ela: Não, foi você.

Ele: Quem é você?

Ela: Não me pergunte isso. E não tenho que lhe dar satisfação.

Ele: (com energia) Você não deveria ter vindo.

Ela: Nem você.

Ele: Mas acontece que estamos aqui e chegamos ao mesmo tempo.

Ela: Você me machucou.

Ele: Você é que me feriu.

Ela: Isso aqui estava um breu. Por que não acenderam a luz para a nossa chegada?

Ele: É que ela não estava prevista. Pelo menos ninguém tinha certeza do horário em que chegaríamos. Não sei direito o que estou dizendo. Também depois desse choque repentino.

Ela: Na verdade, eu estava caminhando há dias para chegar aqui hoje. Mais precisamente, há anos.

Ele: Eu vim de muito mais longe.

Ela: Que pretensão a sua. De onde?

Ele: Como é que vou saber? Não tenho GPS. Vim de uma estrada escura e sem placas de sinalização. Vim dos mais diversos caminhos. Peguei atalhos. Remei em barcos mínimos. Naufraguei. Voltei à tona. Pode ser até que já tenha morrido e esteja numa outra dimensão inexata.

Ela: Você até que é engraçado. Eu tenho uma bússola. (Tira do bolso uma bússola) As bússolas são mais confiáveis do que os GPs.

Ele: Nunca se sabe. Eu vim buscar a minha sombra. O motivo da minha vida é esse. Ela está aqui. (Faz menção de pegar a sua sombra e colá-la ao corpo) . Agora já posso ir embora.

Ela: Esta sombra é minha, não é sua.

Ele: Quem disse que essa sombra é sua?

Ela: Pelo formato.

Ele: Que pretensão. Você chega, quase me derruba e ainda quer roubar a minha sombra? Fique com a sua sombra, não com a minha. As sombras são intransferíveis. Cada um tem a sua.

Ela: Temos que conversar sobre a nossa colisão. Quem paga os estragos?

Ele: Quem paga os estragos? A vida é uma coleção de estragos, de colisões que não terminam , e ainda assim seguimos em frente, olhamos para o abismo e não nos importamos comn ele. Ninguém paga os nossos estragos. O primeiro estrago já acontece no nascimento. Estávamos tão bem situados, aconchegados, quando de repente, nos arrancam da casa-mãe. Nunca nos recuperamos desse despejo, expulsão, deslocamento.

Ela: Como você fala. Você poderia ao menos me dizer o seu nome.

Ele: Antigamente me chamavam de Acho. Depois passaram a me chamar de Acaso. Faz tempo que ninguém me chama. E o seu nome? O meu nome de batismo, esse ficou longe,se perdeu com aquele que esteve tanto tempo amarrado às suas origens.

Ela: Eu tenho vários nomes: Luzia, Maria, Emengarda, Juliana, Teodora, Jacinta, Sabina, Elvira, Alexandra. Mas também ninguém me chama. Ontem, quando vinha para cá, um menino me chamou: -Tia Eulália. Eu me dirigi a ele como se eu fosse a tia Eulália. Quando cheguei mais perto, ele me falou: - Você não é a tia Eulália. Vai embora. Não gosto de você. É simplesmente constrangedor ser chamado de tia por um desconhecido. E, pior ainda, ser rejeitado em seguida.

Ele: Podemos fazer um acordo. Você paga os meus estragos e eu pago os seus.

Ela: Não tenho dinheiro. Os centavos que eu ganhei eu perdi. O ouro que haviam me deixado de herança eu nunca encontrei. Havia só um bilhete esquecido no sótão sobre uma barra de ouro que estaria guardada para mim em um cofre em uma casa que eu nunca achei. Deveriam me indenizar por essa grande encrenca. Passei anos procurando a barra de ouro e fui me destruindo aos poucos, sem encontrar ouro, prata, cobre, lata.

Ele: Como você chegou até aqui?

Ela: Nunca saberei. E também já não importa. O que eu quero é a minha sombra de volta.

Ele: No caminho, encontrei dois homens que brigavam por causa de um cavalo morto. Os dois se diziam donos do cavalo. O cavalo já apodrecia e eles estavam quase se matando, quando continuei a minha caminhada. Não queria ver o desfecho da história.

Ela: Era só uma história ou era um fato?

Ele: Toda história é um fato e todo fato é uma história.

Ela: Nem sempre. Há histórias que nascem da imaginação. E a imaginação não é um fato, mas uma construção sem pé nem cabeça. Quem sabe você não imaginou os dois homens e o cavalo morto?

Ele: Pode ser. Em uma outra estrada, há anos, eu vi um rinoceronte. Mas não poderia ser um rinoceronte já que esses animais não existem por essas bandas. Continuei caminhando e, quando percebi, o rinoceronte foi se tornando uma névoa, uma fumaça que se desfez no espaço. Mas não há nada mais sem pé nem cabeça que o nosso encontro. Você é que deve ser fruto da minha imaginação. Estamos aqui procurando a nossa sombra perdida. Acordei um dia em minha casa e uma força, sei lá, uma energia sem explicação me puxou para cá me dizendo em voz alta: - vá buscar a sombra. Traga a sua sombra de volta. Foi uma mulher que a tirou de você. Isso foi há muito tempo. Desde então a ideia da sombra perdida, roubada, sei lá, me persegue. O meu corpo faz sombra. Mas eu me refiro a uma outra sombra, muito mais enigmática.

Ela: Pare com esse papo de sombra. Sombra infindável , conversa que não explica os absurdos da vida. A sombra que nos assombra. (Ri). A sombra nos impede de enxergar melhor.

Ele: O ponto crucial é que nos encontramos sem mais nem menos, nos chocamos sem mais nem menos e não sabemos a razão de estarmos aqui. Provavelmente, você deixou família e se aventurou nessa empreitada estranha. Não quero saber a sua história. Nem conto a minha. A sombra é grande, imensa e cobre todos os humanos que pensam.

Ela: (irônica) Então você está livre desse peso.

Ele: Inteligente é você. Ou indigente? Fiz faculdade de direito, trabalhei dez anos como advogado até que resolvi largar tudo e começar a fazer trilha de jipe,moto. Agora estou a pé.

Ela: Foi assaltado?

Ele: Umas vinte vezes.

Ela: E não reagiu?

Ele: Sem reagir, me pegaram, me torturaram, mas me recuso a recuar e retornar à antiga vida confortável na cidade, com uma família. A minha mulher me corneou com um cara mais novo. Ela dizia que eu não dava no couro. Aí, para não matá-la, que não é a minha praia esse lance de me vingar de traição, resolvi sair por aí, sem rumo, e tô nessa já há uns cinco anos. Hoje, encontro você, e nós dois delirando procuramos sombras e mais sombras que não param de se reproduzir.

Ela: Estou gostando desse delírio. Você não tem algo para comermos?

Ele: Só um pedaço de frango, uma coxa. (Dá a ela a coxa de frango).

Ela: E você?

Ele: Estou bem alimentado. Coma sem medo. Deve ter uns três dias.

Ela: Para quem não come há uma semana é uma coxa nova, assada agora mesmo. (Come com prazer e voracidade).

Ele: Uma coxa velha de frango para quem está com fome tem sabor de um prato nobre: um faisão.

Ela: As coxas de faisão têm pouca carne. Eu já comi faisão no meu tempo de boa filha, comportada. Estudei em colégio de freiras. Também fiz faculdade. Namorei, casei, o meu marido era executivo de uma multinacional e nem se importava comigo. Só pensava em comprar carro novo, comer nos melhores restaurantes, mas nunca me disse que me amava e nem perguntava o que eu pensava sobre os mais diversos temas. Trazia para mim tudo pronto e rápido. Foi um casamento fast-food. Eu me enjoei. Prefiro essa coxa de frango que você me deu.

Ele: É hora de ir embora.

Ela: Para onde?

Ele: Se não foi você que roubou a minha sombra, tenho que ir procurar em outro lugar até que a encontre.

Ela: Você também não tem jeito de ladrão de sombra.

Ele: O que mais me perturba é descobrir que existe uma pessoa além de mim procurando a sua sombra.

Ela: Isso de fato é perturbador.

Ele: Há os que não procuram. Talvez seja pior. Não procurar. Conformar-se com a sombra que se perdeu, com o rosto que se perdeu na infância e nunca mais foi buscado ou encontrado.

Ela: Eu estava perdida antes. Tudo foi preparado para mim. A princesinha. A princesinha hoje está com quarenta anos e só agora está tentando recuperar a identidade.

Ele: Qual é o seu nome mesmo?

Ela: Estou quase chegando nele. E o seu?

Ele: Que importa um nome se ele não passa de uma casca, de uma embalagem que nos identifica na hora de preencher o cheque. Cheque? Ainda existem cheques? Ou só cartões?

Ela: Cartões e senhas. Qual é a sua senha para entrar aqui?

Ele: Esqueci. Deve ser: 00000000 ou será 111111111?

Ela: Senha muito fácil esta. Os ladrões não terão dificuldade em descobri-la.

Ele: Perdi a senha.

Ela: Eu também não tenho senha. Sem nome e sem senha. Estamos bem arranjados.

Ele: Quem não tem senha está perdido. Esqueci a minha senha desde que nasci.

Ela: Por acaso você nasceu com senha? Na maternidade, colocaram uma pulseirinha no meu braço. Lá deveria haver um número. Essa talvez fosse a minha senha. Mas não me lembro.

Ele: Tal seria se lembrasse. Todas as senhas são formas de nos aprisionar. E sem senha também estamos presos.

Ela: Talvez estejamos chegando ao ponto. As senhas são sombras, mas sem senhas e nomes não existimos.

Ele: Quando fui estudar direito, eu pretendia na verdade fazer teatro. Não fui porque o meu pai e a minha mãe foram contra. Eu cedi.

Ela: Quem cede uma vez cede sempre. A não ser que fuja. Jogue tudo para o alto: as senhas, o futuro, o presente, o passado, tudo que foi feito sem que nos consultassem.

Ele: Você se sente vazia?

Ela: Às vezes. Só as palavras me preenchem. Conheci um homem de mais de 90 anos, que havia perdido totalmente a memória, mas que não parava de falar. Ele dizia: O mundo acabou, não , o mundo está só iniciando um novo ciclo. A vida é estranha. E ia por aí afora falando, falando, falando, até adormecer. Quando a enfermeira aparecia para lhe servir o café, ele dizia: -Você é a minha mãe. Não quero café. Quero mamar nos seus seios. E fazia menção de pegar nos seios da enfermeira. Ela ria e lhe dava o café. E ele tomava cada gole, abrindo e fechando a boca como se sugasse os seios de sua mãe. (Imita o homem de 90 anos).

Ele: Que história mais estapafúrdia.

Ela: Não mais do que a nossa. Entre perder a sombra e perder a memória, não sei o que é pior.

Ele: Perder a memória é pior. Já não sei. Esqueci.

Ela: Quem não esquece vive a maior parte da vida magoado. Minha avó sempre dizia que mágoa dá câncer.

Ele: Do que ela morreu?

Ela: De câncer.

Ele: E ela tinha mágoa de alguém?

Ela: De todos. Principalmente do meu avô que a deixou com dois filhos pequenos e se casou com a secretária. Ele o amaldiçoou até a morte. Mágoa mata. A minha avó bebeu do próprio veneno.

Ele: Você existe mesmo?

Ela: Como é que eu vou saber?

Ele: Estamos sobre ou sob uma sombra? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?

Ela: As sombras crescem sobre nós à medida que nos enredamos no nosso labirinto. Provavelmente não há saída. Um labirinto dá para outro labirinto que dá para outro e, algumas vezes, nos iludimos achando que estamos livres dele, mas eis que surge um outro labirinto na próxima esquina e de novo nos fecha. Talvez você seja o meu novo labirinto, o labirinto desta hora.

Ele: Por que justo eu? Eu não a chamei, eu não a iludi, eu não a atraí para cá.

Ela: Mas as coisas se dão sem que se planeje nada.

Ele: De novo esse papo de acaso?

Ela: Não sei se é acaso. Só sei que estamos aqui neste instante tenso.

Ele: Você é que está me deixando tenso.

Ela: A tensão é a nossa força. É como um bicho dentro do meu estômago. Um bicho que quer me comer, mas eu reajo. Um bicho, uma fera, uma estranha força que me acompanha e que de repente cresce, me toma por inteira, sai de mim, ganha espaço na casa, na rua, no mundo.

Ele: Eu não sei mais o que eu sinto. É uma sensação indizível. Pode ser o tal labirinto que está dentro de mim.

Ela: Não há fuga possível. Viemos para o mesmo ponto porque essa sombra, essa mancha, esse mistério nos atraíram para cá.

Ele: Quem disse que eu quero fugir? A primeira fuga : do trabalho, da vida planejada, tediosa, repetitiva na verdade foi uma libertação. Caí no vazio. Mas antes o vazio que o cheio sem conteúdo.

Ela: Porra, chega de filosofar. Estamos encrencados, enrolados num papo maluco e sem solução.

(Começa uma coreografia estranha. Os dois corpos se tocam no meio do palco como numa dança suave. Parecem bonecos dançando. Corpos e sombras se misturam. Os corpos continuam muito próximos um do outro).

Ele: E agora? Deixei o casamento para ficar livre.

Ela: E eu que não me casei pelo mesmo motivo. Será que você é a minha sina?

Ele: Vai embora.

Ela: Vai você antes.

Ele: Por que não pode ser você?

Ela: Viemos para o mesmo ponto resgatar a nossa sombra e não é que nos colamos, nops prendemos de uma maneira estranha?

Ele: É isso que acontece com a maioria dos casais. Eles, depois de anos juntos, simplesmente se colam, se tornam um só ou nenhum.

Ela: Pensando bem, se já não temos identidade, que diferença faz sermos um, dois ou nenhum?

Ele: E eu é que queria filosofar? Estou indo. Vou por aí sem rumo como tem sido sempre a minha vida.

Ela: Posso ir com você?

Ele: Quem carrega as malas?

Ela: Você não tem mala. Nem eu.

Ele: É melhor assim. Vida leve, sem mala, sem sombra.

Ela: Eu não faço sombra para você e você não faz sombra para mim.

Ele: Aí até podemos pensar em caminharmos juntos. Sem sombra. Sem fantasmas. As pessoas em geral são especialistas em criar fantasmas. Eu já destruí quase todos os meus.

Ela: Mas os fantasmas e os monstrinhos têm uma capacidade de se reproduzir quase infinita. Para que eles não nasçam em grande escala, é só não pensar neles.

Ele: Pensar demais mata.

Ela: Vamos.

Ele: Em que direção?

Ela: Pode ser por ali.

Ele: Então, vamos. Mas sem pressa. Não temos hora marcada nem no dentista nem no cardiologista.

Ela: E eu não marquei com o cabeleireiro.

Ele: Então podemos ir.

Ela: Sem sombra. Sobre ou sob nós.

(Caminham lado a lado, sem nenhuma pressa. Saem do palco. O palco se ilumina na sua totalidade).

(De 20 a 22 de agosto. Escrita em três dias).