terça-feira, 23 de agosto de 2011

DE DENTRO DA BOCA

(No palco, uma cadeira, parecida com as de dentista, uma mulher de aproximadamente trinta anos com um jaleco branco e , sentado, de boca aberta, um homem de uns cinquenta anos).

A terapeuta: Abra a boca. Logo. Eu não tenho tempo a perder. Cada minuto significa a possibilidade de descobrirmos juntos bloqueios que você traz dentro de você desde que nasceu.

O paciente: Afinal, você é terapeuta ou é dentista?

A terapeuta (enérgica, um tanto irritada): É claro que eu sou terapeuta.

O paciente: Aqui não tem divã, mas cadeira de dentista. Não vim ao lugar errado? Eu sempre quis fazer terapia, mas com divã. Sem divã não tem clima. (Faz que vai levantar da cadeira). É como ir a um restaurante e lhe servirem a comida em uma calota ou em uma peneira.

A terapeuta: (enérgica). Sente-se. Como é exagerado o meu cliente. Todos estranham na primeira consulta. Depois se acostumam. Faz parte do jogo. Abra a boca.

O paciente (abre a boca o máximo que consegue).

A terapeuta: Abra mais. (coloca a mão com luva dentro da boca do paciente).

O paciente: Assim vai me dar uma cãibra. E que jogo é esse? Quem ganha esse jogo? E quem perde? Eu estou pagando. E não é pouco. Isso significa que eu perco.

A terapeuta: Muito bom. O meu paciente tem cãibra no maxilar. Algum trauma que traz da infância. E reclama, tem voz. (grita): VOZ.

O paciente: É problema do maxilar mesmo. Sofri um acidente quando tinha dezenove anos e quebrei o maxilar. Nem tudo é psicológico. Se eu fraturo uma perna e venho aqui depois de algum tempo e reclamo de dor, você vai também me dizer que é psicológico?

A terapeuta: Não tente simplificar as coisas. Quase todas as dores e cãibras têm um fundo psicológico. Vou começar a extrair pela sua boca a maioria dos seus traumas. Olha, você está com um dente cariado, mas isso não é da minha alçada. Eu sou TERAPEUTA. Mantenha a boca aberta.

O paciente: (Fecha a boca) o que você quer extrair de mim?

A terapeuta: Tudo que está bloqueado. (olha dentro da boca). Você respira com dificuldade. Nunca deve ter se revoltado contra os seus pais quando eles lhe disseram: -Cala a boca. Nunca deve ter falado mais alto com o seu patrão.

O paciente: Eu quero falar. É a minha vez.

A terapeuta: (ordena): Cala a boca.

O paciente: Não calo. Quem é você para me mandar calar a boca? Não é meu pai nem minha mãe.

A terapeuta: Confessou. Estamos indo bem. Avançando já na primeira sessão. (olha para a plateia). Foi reprimido na infância. Sempre que fazia uma pergunta, era podado. Não é verdade? Tem coragem de me desmentir?

O paciente: Posso lhe fazer uma pergunta?

A terapeuta: Não. Aqui quem pergunta sou eu. Abra a boca.

O paciente: ( Abre a boca).

A terapeuta(retira algo da boca do cliente): O que é isso?

O paciente: Um fio.

A terapeuta: Não é um fio comum. Um fio dental. É um fio mental.

O paciente: Isso não existe. A senhora está brincando comigo. Fio mental. Só faltava essa? Um fio que me liga aos meus traumas. Que terapeuta original. Pelo menos isso a senhora é.

A terapeuta: Agora me chamou de senhora. Por que esse respeito repentino? Você não me disse que eu não sou nem seu pai nem sua mãe? Reaja. (Abre a boca do paciente e coloca um dedo dentro dela).

(O paciente morde o seu dedo).

A terapeuta: Por que você fez isso? Você não tem direito de me morder.

O paciente: Não falou para eu reagir? Essa fala é perigosa. Nunca diga a um paciente para ele reagir. Se eu estivesse armado, e se eu fosse violento?

A terapeuta: A minha criança está aprendendo. Eu sei lidar com os meus pacientes. E conheço cada um deles já na primeira sessão. Eu nunca falaria para um psicopata reagir. Você não é um deles.

O paciente: Nunca se sabe. (irritado) E eu não sou a sua criança. Sou adulto. Um cara maduro. Consciente de suas responsabilidades. Sou um homem sério.

A terapeuta: A minha criança está reagindo. Diz que não é minha criança. (Para ele) Prova então que não é minha criança.

O paciente: Eu sou um adulto estressado que veio fazer uma consulta para vencer essas angústias naturais nesses tempos tão malucos. Não quero ir a fundo, à infância, mexer com buracos já bem tampados.

A terapeuta: Eles fedem mesmo tampados. E não estão tão bem tampados como você imagina.. Abra a boca. (Olha dentro dela): Você tem mil fossas escuras dentro de você que precisam ser eliminadas, não tampadas.

O paciente (levanta-se): Minha terapeuta fala bonito. É culta. Isso para justificar os 500 reais que eu pago por sessão. Fossas escuras, uma porra. Se eu tenho, você tem também. Você não é melhor nem mais normal do que eu. (pergunta para a plateia). Será que ela é normal? Não sei onde eu li. Alguém disse que de perto ninguém é normal. E ser normal também é o ó.

A terapeuta: Magnífico. Não perdeu a ironia. Quem não consegue ser irônico é porque está morto. O meu paciente está vivo. Eu também estou viva. Nem quero ser normal. A questão não é essa. O importante é se sentir bem, menos angustiado, menos estressado.

O paciente: (concluindo): Se eu estivesse morto, não viria aqui. Os mortos não fazem terapia. A não ser que seja terapia espírita.

A terapeuta: Sente-se.

(O paciente senta-se na cadeira).

A terapeuta: Obediente o meu menino.

O paciente: Fui obediente até os dez anos. Aos 11, me revoltei, mas voltei a ser obediente aos 20 quando me casei. A obediência leva ao comodismo. Nesse país há muitos obedientes. Pagamos altíssimos impostos e na hora que deveria ser de desobedecer, todos pagam como carneirinhos que estivessem próximos da tosquia ou do sacrifício.

A terapeuta: Estamos evoluindo. Abra a boca.

O paciente (levanta-se e ordena): -Fecha a boca. Agora quem fala sou eu. Em casa, só a minha mulher fala. E os meus filhos. No trabalho, sou um mero burocrata. Não tenho poder. Eu vou falar tudo o que eu sinto. Ninguém me segura.

A terapeuta: O que mais te oprime?

O paciente: Não poder ser quem eu sou. Nas reuniões, só digo sim, senhor ao meu chefe. Recebo até que um bom salário, mas não tenho voz. (grita)Eu não tenho voz.

A terapeuta: CALE-SE.

O paciente: Eu não me calo. Quem é você para me dar ordens? É o meu chefe? É só minha terapeuta. SENTE-SE.

(A terapeuta assustada senta-se na cadeira).

ABRA A BOCA. Agora eu é que mando. (tira uma corda da pasta e amarra a terapeuta).

Você é o meu chefe que perdeu a pose e o poder. Ou melhor ainda, você não passa de uma impostora. Papéis invertidos. Eu sou o que está por cima agora. Abra a boca, doutora. (Enfia a mão na sua boca). Que boca úmida. Que boca mais nervosa. Treme sem parar. Até parece que eu sou o terapeuta. Faz de conta que a senhora é minha paciente, quero dizer, você. Como foi a sua infância?

Terapeuta: Foi terrível. (Fala tensa). Fui rejeitada pelos meus pais biológicos. E os pais que me adotaram me tratavam com a máxima frieza.

Paciente: Fale mais, desembucha. Solta tudo.

Terapeuta: Como vou soltar tudo se estou presa? Você me amarrou. E há uma outra prisão que eu não sabia que estava em mim. Está vendo o que você fez? Está me desestruturando. Eu é que sou a terapeuta. Não você. Os meus fantasmas estavam muito bem guardados e você os libertou. E agora?

Paciente: Eu é que pergunto. Parecia tão segura. Querendo extrair o meu íntimo. Toda invasão é perigosa e pode provocar consequências imprevisíveis. Abra a boca.

Terapeuta: Não consigo. Estou travada.

Paciente (ironicamente): É só destravar. Fale mais da sua família, aquela que a adotou. Fale mais, fale mais.

Terapeuta: O meu irmão adotivo tentou me matar, mas eu me vinguei. Coloquei pimenta no sorvete dele.

Paciente: Que crueldade. Que perversidade.

(A terapeuta, de boca aberta, está assustada).

Terapeuta: Você está fora de controle.

Paciente: Agora que eu assumi o controle, você me diz que eu estou fora de controle.
Agora é que eu estou no controle. Prendi aquela que tentou extrair o mais profundo de mim. Conseguiu, mas com consequências. Não se abre um baú velho, que ficou fechado décadas, imaginando que não haja nenhuma aranha caranguejeira ou uma cobra escondida. Todos os bichos guardados, aprisionados, só esperam uma oportunidade para que venham à tona. Eu tenho um zoológico dentro. E você também.
(Começa a declamar):
Cobras, lagartos, serpentes, tigres, elefantes, hipopótamos, rinocerontes, além dos monstros, mulas sem cabeça, dragões, seres imaginários de dez cabeças. Todos temos bichos guardados. Centenas, milhares, milhões. (olha para uma determinada pessoa na plateia).
Você não?

(Ele ordena): Abra a boca.

A Terapeuta: Você está quebrando uma ordem de forma perigosa. Quem deve abrir a boca é você, mas sentado aqui. Não eu. Se eu lhe contar o que foi a minha vida, ficarei totalmente sem força, desprotegida. E sem a minha capa protetora não poderei mais ser a terapeuta. E eu só consigo ser isso. (quase chora): Eu não sirvo para trabalhar em um restaurante como chef, garçonete ou balconista. Eu não sirvo para isso. Só sei ser terapeuta.

Paciente: Ninguém é só terapeuta, ou só engenheiro, ou só funcionário de um escritório, bancário, dentista, médico. Antes de tudo, somos pessoas.

Terapeuta: Fui eu que fiz você descobrir isso.

Paciente: Não, fui eu. Eu é que escolhi vir aqui. Eu é que procurei você. Não foi você que me procurou.

Terapeuta: Me solte agora.

Paciente: Você está solta.

Terapeuta: Você me amarrou.

Paciente (com energia): Mentira. Os terapeutas geralmente são muito mais amarrados e complicados do que os clientes porque carregam consigo histórias que não são as deles e não conseguem processá-las.

Terapeuta: Você está querendo mesmo assumir o meu lugar. Impostor. Invasor. Você já pagou a consulta. Pode ir embora. Eu lhe dou alta.

Paciente: Que maravilha. Uma sessão milagrosa. Mas, se funcionou, fui eu que me curei. Abra a boca.
Terapeuta: Não abro. (olha para o relógio na parede): A sessão terminou. Está na hora do novo paciente chegar.
Paciente( desamarra a terapeuta):Desculpe, eu pensei que ainda tínhamos mais alguns minutos.
Terapeuta ( A terapeuta levanta da cadeira e se recompõe) (cumprimenta-o): Até a próxima sessão.
Paciente: (cumprimenta-a): Até a próxima. (Sai e a terapeuta senta-se na cadeira para relaxar).

(Peça escrita de 23 de agosto a 5 de setembro).

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