(A peça se passa em época não definida, em um país chamado Braséia, que por mais semelhanças tenha com o Brasil, não foi baseada nele. O nome desse país imaginário é só um detalhe sem maior importância. Trata-se de uma fábula política).
Personagens:
Rato 1
Rato 2
Rato 3
Rato 4
(OS 4 personagens usam terno e gravata e se parecem com ratos tanto no rosto quanto nos membros e nos rabos).
Rato 1: Eu não me conformo. Ainda não me enviaram o meu queijo superfaturado deste mês.
Rato 2: Calma, excelência. Já fui informado que dessa vez virá uma tonelada de Roquefort da melhor qualidade. E por um preço bem acima do mercado.
Rato 3: Quanto mais caro, melhor. Porque aí pegamos a nossa parte.
Rato 1: Não dá mais para suportar as denúncias. A imprensa nos trata como se fôssemos ratos.
Ratos 2: E não somos?
Rato 3 (entrando na conversa): Somos políticos de respeito. Não vivemos sem os melhores queijos. Somos nós que representamos esse povo que não serve para nada além de votar em nós a cada quatro anos. Para compensar, temos que ser tratados com os melhores queijos suíços, franceses, holandeses.
Rato 4: E a mala? Quando chega a mala?
Rato 1 (todo feliz): Está a caminho.
Rato 2 (lambendo os beiços): Espero que dessa vez venha mais recheada. Afinal, a minha Ferrari está muito rodada. Preciso comprar uma nova.
Rato 1: E o meu avião particular derrapou na pista semana passada porque também já voou demais. Está na hora de trocá-lo.
Rato 3: E a minha ilha particular está precisando de uma reforma geral. Não consigo dormir de preocupação. Qualquer hora o mar a devora. Preciso construir muros de contenção e isso custa caro.
Rato 2: Não é fácil ser político. Se não tivéssemos esse padrão, ninguém votaria em nós. Os eleitores não confiam em pé-rapado. Eles votam em quem tem jatinho, Ferrari, Mercedes, BMW e come os melhores queijos.
Rato 1: E as melhores lagostas.
Rato 3: E caviar Beluga do Irã.
Rato 2: Eu me considero uma pessoa honesta. Porque, pensando bem, honestidade é um conceito muito relativo. Depois que Einstein desenvolveu a Teoria da Relatividade há mais de cem anos, tudo é tão relativo.
Rato 1: (repete): Tudo tão relativo.
Rato 3: Tudo tão relativo.
Rato 4: Tudo tão relativo.
Rato 2: Sempre que formos acusados de fazer algo errado, que eles chamam de antiético e imoral, temos que nos lembrar da Teoria da Relatividade. Ela nos serve de argumento.
Rato 1: Mas quando aparecem na mídia aquelas denúncias de obras superfaturadas que nunca terminaram?
Rato 2: Podemos alegar que isso também é relativo. Enquanto as obras não terminam, isso significa que elas estão sendo realizadas e, quando ficarem prontas, durarão um tempo maior porque, se já estivessem prontas as novas pistas, por exemplo, elas já estariam se desgastando devido aos veículos pesados que circulariam por elas. Como ainda não terminaram, ninguém pode criticar afirmando que elas estão envelhecendo.
Rato 1: De fato, tudo é relativo.
Relativíssimo.
Rato 3 : E se nos pegarem de novo com as malas cheias de dinheiro em um aeroporto ou em um hotel?
Rato 2 : Falaremos que o dinheiro que está neles é para reformar escolas e hospitais.
Rato 4: E se perguntarem onde?
Rato 2: Daremos um endereço também relativo.
Rato 4: O que significa um endereço relativo?
Rato 2: Que muda de rua e de avenida de acordo com as circunstâncias e as necessidades.
Rato 3: Vossa excelência é brilhante.
Rato 2: Vossa excelência também.
Rato 1: Todos aqui somos brilhantes.
Rato 4: Se não brilhássemos, não estaríamos no topo, comendo os melhores queijos e tomando os melhores vinhos.
Rato 1: No fundo, todos queriam estar na nossa pele.
Rato 2: De ratos, excelência?
Rato 1: Não seja inconveniente. Não precisa lembrar esse mero detalhe. Precisamos fazer uma plástica. Se for em um bom cirurgião, ninguém perceberá que somos roedores.
Rato 3 : Fala baixo. Ninguém pode nos ouvir. E disfarçamos tão bem a nossa condição que quase ninguém percebe.
Rato 4: O problema é o rabo.
Rato 2 (repete): O problema é o rabo.
Rato 1: Podemos retirá-lo.
Rato 3: E se for fatal?
Rato 4: Toda cirurgia envolve certo risco. E o perigo é perdermos totalmente a nossa identidade.
Rato 2: É melhor não mexer.
Rato 1 (concorda): É melhor não mexer.
Rato 3: Se chegamos até aqui, nessa condição magnífica, justamente porque somos mamíferos roedores da melhor linhagem , por que iremos agora negar a nossa origem?
Rato 1: Aí eu discordo, excelência. Nós nos tornamos roedores depois. Não nascemos assim.
Rato 2 (espantado): Não nascemos assim?
Rato 4: Com certeza não. Mas aprendemos ao longo da vida a viver essa mudança incrível. Temos uma condição muito especial.
Rato 3: Mudamos para melhor.
Rato 4: Sem dúvida, para melhor. Quantos gostariam de estar no nosso lugar, mas não têm know-how para isso. Para ser roedor profissional, de estirpe, é preciso ter vocação.
Rato 1: Vocação nós temos.
Rato 2: Vocação nós temos.
Rato 3(com orgulho): E que vocação.
Rato 4: Vocação é vocação. Eu particularmente sou muito bom nisso.
Rato 1: Nisso o quê?
Rato 4: Em desvio de verbas. Sou o campeão. Faço de uma tal maneira que quando a imprensa percebe e denuncia, faltam provas para que nos peguem. Fica tudo no terreno dos indícios. Deixamos pouquíssimos rastos. Insuficientes.
Rato 3: Já a minha especialidade é negociar com as empreiteiras o preço. Superfaturamento é comigo mesmo. Que ninguém nos ouça. Um viaduto que custaria um milhão passa a custar 5. É o milagre da multiplicação dos preços. Dos viadutos, das pontes, dos edifícios públicos.
Rato 2: Eu sou bom na hora de receber a mercadoria.
Rato 1: Você quer dizer o queijo?
Rato 2 (ri cinicamente): O queijo, a bufunfa, o tesouro, os valores, diga como quiser.
Rato 1: E eu sou o genérico do pedaço. Faço de tudo e muito bem. Ser especialista só em uma área pode complicar quando não estamos juntos. Temos que saber nos virar sozinhos nas emergências.
Rato 2: Se bem que nunca estamos sozinhos. O nosso setor só cresce. Esse é o problema. Quanto mais cresce, mais precisamos faturar porque temos família para sustentar.
Rato 3: E carro, helicóptero, mansão, jatinho. É uma família muito grande.
Rato 4: E queijo.
Rato 1: É claro. Em primeiro lugar, o queijo.
Rato 2: Gruyere, Camembert, Roquefort, Brie.
Rato 3: Não vivemos sem o melhor queijo.
Rato 2: Ninguém pode dizer que não temos bom gosto.
Rato 1: Por falar em bom gosto, quando vamos para Las Vegas?
Rato 2: Eu prefiro uma temporada em Mônaco.
Rato 3: Eu amo Paris.
Rato 4: Que tal um resort no Nordeste?
Rato 1: Que pobreza. Ratos que pensam pequeno nunca chegarão ao paraíso.
(O rato 4 começa a tossir)
Rato 4: Estou sentindo cheiro de raticida.
Rato 2: Vira essa boca para lá.
Rato 3: Eu tomei antídoto.
Rato 1: Eu também. O melhor antídoto contra os raticidas é armar planos cada vez mais sofisticados. Aqui em Braseia falam tanto em combater a corrupção, mas tudo não passa de especulação. A nossa rede é forte.
Rato 3: À prova de raticida, de ratoeira, de qualquer produto ou arma que possa nos prejudicar. Nascemos no país certo.
Rato 2: Em Braseia estamos garantidos. Temos um futuro promissor pela frente.
Rato 1: Enquanto a Justiça for lenta, ninguém nos pegará.
Rato 4: Somos muito competentes.
(Uma fumaça toma conta do palco. Os quatro ratos perdem o equilíbrio, caem, depois de um tempo se levantam ainda tontos, dançando uma dança estranha).
Rato 1: Estão querendo nos pegar.
Rato 2: O cerco está aumentando.
Rato 3: Vocês estão com medo?
Rato 4: Medo? Não passa de pressão para nos intimidar.
Rato 1: Quantos da nossa espécie humana roedora estão na cadeia?
Rato 2: Dois, três no máximo.
Rato 4: Podem até nos prender, mas em poucos dias estamos livres, prontos para comer os melhores queijos e tomar os melhores vinhos.
Rato 2: A sorte está do nosso lado.
Rato 1: O nosso destino é esse. Ganhar mais e mais para o bem de nossa família.
Rato 3: Você não sente às vezes um pouco de culpa?
Rato 1: Culpa de quê? De ser feliz? Você também não sente. Se sentisse, seria um degenerado e não poderia pertencer ao nosso grupo.
Rato 3: É claro que eu não sinto. Culpa de fazer tudo bem feito?
(Desce uma mala de cima do palco).
(O Rato 2 abre a mala e vem até os outros distribuindo dinheiro):
Rato 2: Divirtam-se. O nosso negócio só prospera.
Rato 1: (cheira o dinheiro): Cheirinho de nota nova.
Rato 3 (coloca no bolso e na cueca): O meu corpo precisa desse contato íntimo. Faz bem para a saúde.
Rato 4: Esse é o melhor esporte do mundo. (Pega as notas): Colher dinheiro. Não dá em árvore, mas é como se fosse. As malas são como árvores frutíferas para nós. E elas dão frutos em todas as estações. Não sofremos com a entressafra.
(Desce outra mala. Os 4 ratos correm para abrir a mala cheia de queijos):
Rato 1: Tem queijo para todos.
Rato 2: Para todos nós, você quer dizer.
Rato 1: Sim, nós somos todos. Todos os que participam do nosso banquete, das nossas traquinagens, do nosso trabalho, do nosso esforço descomunal para nos mantermos no topo.
Rato 3: Não é fácil, mas nós sabemos como fazer.
Rato 4: Temos talento.
Rato 1: Precisamos pensar na próxima eleição.
Rato 2: Já está no papo.
Rato 1: Mas não podemos nos descuidar.
Rato 3: Fazer promessas como se fôssemos cumpri-las. (dá uma risada).
Rato 4: Fazer promessas é fundamental.
Rato 3: Não cumpri-las também.
Rato 2: Porque se elas forem cumpridas não sobra nada para nós.
Rato 1: E queremos tudo.
Rato 3: Merecemos tudo.
Rato 2: Não deixamos por menos. Temos que honrar a nossa estirpe. Somos ratos nobres.
Rato 1: De sangue azul. Pensando bem, herdamos de nossos antepassados essa sabedoria.
Rato 2: Acho que é isso mesmo. Temos tradição.
Rato 3: E que não venham dizer o contrário. Queremos só respeito.
Rato 1: Nada além disso.
(Ouvem gritos de fora do palco):
-Ladrões, fora!
-Ladrões, fora!
-Corruptos!
Rato 1: Você está ouvindo isso?
Rato 2: Estou.
Rato 3: Mas não é conosco.
Rato 4: Não pode ser.
Rato 1: É só não nos importarmos que passa.
Rato 2: Já passou.
Rato 3: Eles esquecem rápido.
Rato 4: E nós seguimos em frente.
Rato 1: Comendo os melhores queijos.
Rato 2: Comprando os melhores carros.
Rato 3: Bebendo os melhores vinhos.
Rato 2:Sem que nada nos intimide.
Rato 1: Seguimos em frente. Cada vez mais prósperos e realizados.
(Ficam em cena sorrindo de forma cínica, sem se importar com mais nada. Comem alguns pedaços de queijo).
Rato 2: Qual é a moral da história? Não podemos sair de cena sem apresentar uma moral?
Rato 1: Moral? Para que moral? Que papo mais careta, sem cabimento.
Rato 3: Somos personagens de uma fábula. Você já viu fábula sem moral?
Rato 4: Moral. Agora nos pegaram.
Rato 1: Não. Ninguém nos pega. Somos inteligentes. Podemos inventar não só uma moral, mas várias. Tudo não é relativo? Até a moral é. A minha moral é: Só não se dá bem na vida quem é tonto.
Rato 2: É uma moralzinha razoável. Vou dizer a minha: Quem não superfatura acaba sendo superfaturado.
Rato 3: Você sempre foi bom em trocadilhos. A minha moral é: Ratos espertos nenhuma ratoeira pega.
Rato 4: A minha moral é: Muitos têm a honra de sustentar o sucesso de poucos.
Rato 1: É moral isso?
Rato 4: Depende do ponto de vista. Somos todos a favor da moral, da família, dos bons costumes, acreditamos em Deus. Somos a própria moral.
Rato 2: A moral encarnada. Somos incompreendidos, mas o que importa é que temos a consciência tranquila.
Rato 3: Nada nos perturba.
Rato 1: De fato, quanto mais nos atacam, mais nos damos bem. Ganhamos mais força.
Rato 2: Temos energia sobrando.
Rato 4: Para continuarmos no topo por mais dez, vinte, trinta, cinquenta, cem anos.
Rato 1: Até a eternidade.
Rato 2: Somos eternos.
Rato 3: Somos eternos.
Rato 4: Somos eternos.
(Parece que estão em um estado sublime, compenetrados, acima do bem e do mal).
(Peça escrita em dois dias).
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