UM MINUTO É MUITO
(São várias cenas rápidas, com inúmeros personagens. O número de atores pode ser bem variável, com cada um deles assumindo vários papéis).
Primeira Cena
(Um casal de namorados em uma casa praticamente sem móveis. Ela anda depressa falando ao celular enquanto ele tenta falar com ela).
Ele: Bem, preciso falar com você.
Ela: Fala rápido. Estou ocupada. Negócios.
Ele: Me dê um minuto.
Ela: Um minuto é muito.
Ele: Preciso lhe dizer que te amo.
Ela: Já ouvi. (volta a falar no celular).
Ele: Você não diz nada?
Ela: Não me atrapalhe com besteiras, amor.
(As luzes se apagam)
Segunda Cena
(Um patrão e um empregado)
Empregado: Por favor, quero lhe falar um minuto.
Um patrão: Isso é tempo demais. Você vai me indenizar pelo tempo perdido?
Empregado: Trinta segundos então.
Um patrão: Fale logo.
Empregado: Preciso de um aumento.
Um patrão: Só se for de trabalho, isso não falta. (Ambos saem de cena).
Terceira Cena
(Um casal deitado no chão como se fosse cama).
Ele: Foi bom para você?
Ela: Perfeito. Um minuto. Até é tempo demais. Da próxima vez a nossa meta é atingir os trinta segundos.
Ele: Você me ama ou quer bater algum recorde?
Ela: O importante é eficiência: no trabalho e na cama. Somos um casal perfeito e ágil. Casal modelo século XXI.
(As luzes se apagam).
Quarta Cena
(Dois homens em um restaurante e um garçom)
Primeiro homem: Faz um minuto que pedi o filé.
Segundo homem: E eu um minuto que pedi o peixe.
Garçom: Está saindo.
Primeiro homem: Pode cancelar. Sou um homem de negócios. Não posso esperar tanto tempo por um prato.
Segundo homem: Vamos para um outro restaurante mais pontual. Levar mais de um minuto para preparar um peixe é um absurdo.
Garçom: Me desculpe, mas o cozinheiro tem muitos pedidos.
(Os dois homens saem do restaurante irritados).
Quinta Cena
(Patrão e funcionária)
Patrão: Você está despedida. Atrasou hoje 58 segundos e oito décimos.
Funcionária: Foi só hoje por causa do trânsito.
Patrão (pega anotações em um papel): Ontem, atrasou 13 segundos e dois décimos, anteontem atrasou 7 segundos e quatro décimos, na semana passada atrasou na quarta-feira 2 segundos e cinco décimos).
Funcionária: O sr. me desculpe.
Patrão: Pode passar no RH e acertar as suas contas.
(Ela sai chorando e o patrão sai impassível, sério).
Sexta Cena
(Médico e paciente no consultório)
Médico: A senhora está com virose.
A paciente: O sr. nem me examinou.
Médico: A sua receita.
A paciente: Já estava pronta?
Médico: Até logo. (despacha a paciente sem dar a mão para ela). Ainda tenho seiscentos pacientes para atender hoje. Um por minuto.
(A paciente sai tossindo e indignada. As luzes se apagam).
Sétima Cena
(Professor e dois alunos na classe):
Eu vou recolher as provas. Só falta um minuto.
A aluna: Mais um pouquinho só, professor.
O aluno: Ainda falta responder duas questões.
Professor: (consulta o relógio): Já deu um minuto. (Recolhe as provas enquanto os dois alunos ficam com cara de decepção).
(Saem de cena)
Oitava Cena
(Mulher joga lixo solto na rua enquanto um homem a observa):
Homem: A senhora, Dona Dalva, não aprende. É advogada e joga lixo na rua.
Mulher: Sou uma mulher ocupada. Não tenho tempo para pensar em lixo.
Homem (furioso): Mas jogar pode.
(Ambos saem de cena correndo, ele tentando alcançá-la).
Nona Cena
(O assaltante e a vítima dentro da casa que foi invadida por ele).
O assaltante: Me passa logo o dinheiro que eu tenho um assalto agendado para a casa ao lado para daqui a um minuto.
(A mulher passa o dinheiro para o ladrão sem reagir. O ladrão sai correndo e a mulher olha para ele assustada).
Décima Cena
(O médico e o chefe do hospital)
O chefe: Recebi uma denúncia que ontem o sr. ficou só um minuto no plantão de 12 horas. E tem sido assim em quase todos os seus plantões.
O médico: E os plantões que eu tenho na mesma hora em outros hospitais de bairros distantes como ficam?.
(Os dois ficam parados em cena, um olhando para o outro).
Décima primeira cena
(O pai e a filha falando ao celular um diante do outro.)
O pai: Preciso falar com você.
A filha: Pai, há quanto tempo.
O pai: Quando poderemos conversar pessoalmente?
A filha: Eu prefiro falar com você, pai, celularmente, é mais emocionante. Da próxima vez, me manda uma mensagem.
(O pai fica falando sozinho no celular já que a filha desligou).
Décima segunda cena
(Mulher espera no ponto de ônibus enquanto acena sem que nenhum pare para que ela possa subir. Barulho de vários ônibus passando).
Mulher: Preciso aprender a tomar ônibus voando. Sem asas, fico aqui a ver navios, quero dizer, a ver ônibus voadores que não estão nem aí para nós, pobres mortais que não sabem voar).
Décima Terceira Cena
(O marido lê o jornal folheando-o com uma velocidade espantosa).
O marido: Já li o jornal inteiro.
A mulher: (espantada): Em um minuto? (Para testar o marido): Quais as principais notícias?
O marido (Pensa, enrola) É...., que pergunta difícil. Já esqueci.
(A mulher olha para ele de forma zombeteira).
As luzes se apagam.
Décima Quarta Cena
(Dois turistas):
-Que viagem fantástica.
-Você acha?
-Visitar dez países e trinta cidades em uma semana.
-De que lugar você gostou mais?
-Posso ser sincero? Do avião.
(Ficam olhando a paisagem como se estivessem distantes, em outra dimensão).
Décima Quinta Cena
(Dois homens caídos no chão, após terem sido atropelados).
-Você viu o carro que nos atropelou?
-Algum carro nos atropelou?
-Eu tenho certeza que morri. E você?
(Barulho de trânsito, buzinas, pessoas gritando: -Passa por cima; o farol fechou. Os dois atropelados continuam no asfalto sem se mover).
Décima Sexta Cena
(Um casal em lua de mel)
Ela: Eu me sinto tão feliz com o nosso casamento.
Ele: Eu também, mas já está na hora da gente se divorciar.
Ela: É tão romântico se divorciar na lua de mel.
Ele: Pode não ser romântico, mas é prático.
Ela: Eu te amo.
Ele: Já passou.
(Olham-se friamente).
Apagam-se as luzes.
Décima Sétima Cena
O entregador de pizza entrega a pizza para o morador da casa, que está falando ao celular).
O morador: Mas já chegou? Ainda nem tinha falado os sabores para a moça da pizzaria.
O entregador: Nem precisa.
(Entrega a pizza e o morador vai correndo para dentro de casa gritando):
-Vamos comer logo se não esfria.
Décima Oitava Cena
(Um deputado dando uma entrevista):
A repórter: É verdade que o sr. compareceu durante todo o seu mandato um dia sono e ficou só um minuto no plenário?
O deputado: E apresentei um projeto espetacular em um minuto. E quem comparece a todas as sessões e não apresenta nenhum projeto?
A repórter: Que projeto era esse?
O deputado: Um superprojeto, um megaprojeto, um hiperprojeto. Mas prefiro não falar sobre ele que tomaria o meu tempo que é muito precioso.
(A repórter olha para ele com cara de tacho e não diz nada).
Apagam-se as luzes.
Décima Nona Cena
(Uma mulher assustada):
Não estou vendo ninguém nas ruas. Nenhum carro, nenhuma pessoa, nenhum cachorro, nenhum gato, nenhum passarinho, nenhuma moto, nenhum edifício, nenhuma casa, nenhuma lanchonete do McDonalds, nenhum shopping. Será que o mundo acabou mesmo ou é boato?
(Apagam-se as luzes).
Vigésima Cena
(Duas amigas se encontram na rua e se beijam).
Primeira amiga: Oi.
Segunda: Tchau.
Primeira: Tchau.
Segunda: Até.
Primeira: Até.
(Saem correndo, cada uma em uma direção).
Vigésima Primeira Cena
( A mulher, carregando um cachorro de pelúcia que representa o cachorrinho que ela comprou no pet shop no dia anterior).
A mulher: Eu comprei este cachorrinho lindo aqui ontem e ele morreu hoje.
A dona do pet shop: Quanto a senhora pagou?
A mulher: 400 reais.
A dona: Então foi por isso. Quanto menor o preço, menor o prazo de validade. Um cachorro de 1000 reais dura um ano, de 400 dura um dia. A senhora verificou o prazo de validade?
A mulher (examina o cachorro): Está escrito que vence hoje.
A dona: Hoje é tudo muito rápido. Nem nos damos conta que é necessário examinar o prazo de validade. Ele durou um dia dentro do prazo. Mais alguma dúvida?
A mulher: Não. (sai chorando carregando o cachorro).
Vigésima Segunda Cena
(Um homem pergunta para um outro homem na rua):
-O sr. viu um elefante passando por aqui?
-Faz tempo. Mais ou menos um minuto.
-É, de fato faz muito tempo. Eu pensei que ele tivesse passado há no máximo dez segundos.
(Caminham até desaparecer).
Vigésima Terceira Cena
( O presidente do clube conversando com um dos diretores):
Presidente: A partir de agora, quando tivermos que homenagear um ex-atleta ou ex-diretor que tenha falecido, faremos um segundo de silêncio. Aí todos respeitam. Um minuto é muito. Começa aquela barulheira que a homenagem perde o sentido.
(O diretor concorda com a cabeça sem dizer nada).
Vigésima Quarta Cena
(O padre está celebrando o casamento e diz para o noivo):
O sr. aceita a Regina Roberta em casamento?
-Sim. Só que ela não chegou ainda, seu padre.
-Ela está atrasada um minuto. Pelo menos você já está casado. Para ela, será preciso agendar outra data porque tenho outro casamento daqui a um minuto.
(O noivo fica olhando para o padre sem entender nada).
Vigésima Quinta Cena
(Dois rebeldes armados rendem o tirano):
-Assassino, ladrão, corrupto. Está há 42 anos no poder e ainda pede mais um minuto?
(As pessoas gritam do lado de fora): Forca, forca, forca para o tirano!
(Eles o agarram, o amarram e o levam para dentro onde provavelmente será julgado e enforcado).
Vigésima Sexta Cena
(A mãe reclama para a diretora da escola da merenda servida durante o ano na escola do filho dela ter sido à base de salsicha).
Mãe: O meu filho só comeu salsicha este ano. Foi quase uma tonelada de salsicha.
Diretora: Quem come uma tonelada de salsicha neste país? E não tome o meu precioso minuto que ele vale muito.
(A mulher sai nervosa, esbravejando).
Vigésima Sétima Cena
( Uma mulher bem gorda está deitada numa mesa que representa uma maca. Na parede está escrito: Lipoaspiração flash).
Paciente: Doutora, é seguro?
Doutora: E rápido. Lipoflash. Demora um minuto.
(As luzes se apagam e voltam a se acender. A mulher, antes gorda, está extremamente magra e não consegue se sustentar em pé):
Paciente: Estou tão fraca, doutora. Será que vou morrer?
Doutora: Isso eu não sei lhe dizer. O importante é que a lipo funcionou.
(A paciente sai de cena apoiada pela médica e uma enfermeira).
Vigésima Oitava Cena
(Duas mulheres conversam ao telefone, uma de cada lado do palco).
-Alô, Paula. Estou com saudade. Há quantos anos não nos falamos.
-Fernanda, eu estou ocupada. Daqui a um minuto te ligo.
(As luzes se apagam, a mulher ocupada saiu de cena. A que espera o retorno do telefonema está ao lado do telefone. As luzes se apagam e se acendem várias vezes enquanto a mulher que espera vai envelhecendo, os cabelos vão ficando brancos e a pele enrugada).
A mulher(desesperada, dá um grito): Que minuto é esse?
(As luzes se apagam).
Vigésima Nona Cena
(Um homem aparentando mais de 90 anos):
O tempo escorreu como água na torneira. Quem disse que eu tenho 98 anos? Só passou um minuto. E eu não vi o dito cujo.
(Fica paralisado, olhando para o vazio. As luzes apagam-se).
Trigésima Cena
(Um homem e uma mulher entram em cena e começam a discutir. Esta cena deve demorar rigorosamente um minuto).
Ele: Um minuto é muito.
Ela: Um minuto é pouco.
Ele: Um minuto é pouco.
Ela: Um minuto é muito.
Ele: Um minuto é muito.
Ela: Um minuto é muito.
Ele: É pouco.
Ela: É muito.
Ele: É pouco muito.
Ela: É muito pouco.
Ele: Um minuto é tudo.
Ela: Um minuto é nada.
(peça escrita no dia 8 de setembro de 2011).
Novas peças de Jaime Leitão
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
IMPOSTO TAXA IMPOSTO
Escrita em 7-9-2011
(Um homem de uns cinquenta anos está sentado em uma cadeira no centro da cena. Um outro homem com o rosto parcialmente coberto com uma espécie de máscara surge na cena de forma repentina e começa a falar): Eu vim cobrar a taxa de respiração. Você inspirou neste mês aproximadamente cinco bilhões de litros de ar da atmosfera e precisa pagar por isso.
O Homem: Como você chega assim sem bater? O que significa isso? Taxa de ar agora? Que novidade extravagante, estratosférica, extraordinária. Não bastam os impostos que eu pago? Oitenta por cento do meu salário vão para impostos, taxas, plano de saúde e seguro. Vou pagar agora pelo ar que respiro? Isso é um absurdo. Esperava tudo, menos isso. E não tem a mínima base legal.
O Mascarado: Todos irão pagar pelo ar que respiram. Esse ar puro. Respirar é uma atitude que suja esse ar tão maravilhoso. O imposto será cobrado para limpar o ar. Pelo bem da natureza e todos os seres.
O Homem: Ar puro?(ele tosse): O ar está poluído com monóxido de carbono ,hidrocarboneto, óxido nitroso, enxofre e fuligem. Fora outros inúmeros poluentes.
O Mascarado: Estudado o meu amigo. Sabe demais. Onde aprendeu essas baboseiras? Foi na escola? Isso é perigoso. Aprender demais não é bom porque ameaça a convivência em sociedade.
O Homem (levantando-se): Não sou seu amigo e não aceito ameaças. Como foi invadindo a minha casa sem mais nem menos? A porta não estava aberta. Como entrou? Só se foi pelas paredes. Que truque é esse?
O Mascarado: Eu sou o homem da taxa e do imposto. Não preciso pedir licença. Não sou uma pessoa, mas uma entidade que representa uma força superior. Eu entro pela parede, pelas janelas fechadas, pela fechadura.
O Homem: É um Deus? O Mascarado: Não exagere. Eu não sou nenhum Deus. No máximo, sou um funcionário dele. Um assessor especial, mas não tenho estabilidade. Meu cargo é de confiança. Tenho que cumprir com a minha missão da melhor maneira para me manter nele.
O Homem: Você na verdade é um impostor e cometeu uma impostura invadindo a minha casa.
O Mascarado: Eu não preciso pedir licença. Eu chego, entro e imponho. É a minha função. Sou pago para isso. Sou o homem dos impostos. E atualmente estou implantando o imposto da respiração. É difícil tornar totalmente claro o motivo da cobrança de imposto tão original. Nunca neste país houve antes um imposto tão criativo. Saiu até no New York Times. Eu apareço na foto. Estou me tornando importante.
O Homem: Que violência. Estou sendo vítima de um assalto. (grita): Socorro! O homem dos impostos invadiu a minha casa, o meu corpo e a minha alma.
O Mascarado: Não tente reagir. Não seja dramático. Todos reclamam, mas acabam pagando. Se você não pagar a taxa de ar, você não poderá respirar mais.
O Homem: Aí eu morro? O Mascarado: Não é inteligente? Quem não respira morre.
O Homem: Como você vai me impedir de respirar se eu não pagar a taxa? O Mascarado: Quem não paga a conta de água tem a água cortada, quem não paga a taxa de ar tem a respiração cortada.
O Homem: De que maneira? O Mascarado: Isso eu não posso afirmar com certeza. O método mais usado é sufocamento.
O Homem (sem se intimidar): Eu e toda a população deveríamos é receber uma indenização pela péssima qualidade do ar, não sofrer uma punição por respirar. Quem polui o ar são as indústrias, os carros, não nossos pobres pulmões.
O Mascarado: Você é um sonhador. Ainda acredita no mundo perfeito, mas não é assim que funciona. Pertencemos a uma época pragmática. As ideologias foram substituídas pelo pragmatismo. Falar em ideologia hoje é o mesmo que imaginar que ainda existem dinossauros nas florestas e até nas ruas.
O Homem: Tudo tem um limite. Em nenhum lugar do mundo há tanta taxa e imposto como aqui. E agora estamos chegando ao cúmulo, ao crime mais vil e intolerável.
O Mascarado: Se não forem cobrados impostos, o país para. A segurança, a saúde, a educação dependem dos impostos pagos. Você não sabe disso? O Homem: Grandissíssimo impostor. Nunca houve tantos furtos de carro, tanta violência. Se houvesse segurança, isso não aconteceria. Pagamos impostos e quem nos livra dos ladrões? Quem nos livra dos péssimos serviços?
O Mascarado: Segurança é um conceito, não necessariamente um fato real. Temos bastante segurança, mas isso não significa que não venham a ocorrer assaltos, furtos, latrocínios. A violência faz parte da natureza humana. Isso nunca mudará. Mas há que segurança, isso é inegável. Eu mesmo estou com três seguranças lá fora me aguardando em caso de alguma reação perigosa. É só dar um assobio que eles entram.
O Homem: Que grande argumento. Pagamos para nos sentirmos seguros, nos fechamos em casas com cerca elétrica, alarme e câmeras e somos invadidos por criminosos como se isso fosse natural. Você também me invadiu, portanto você também é um criminoso.
O Mascarado: Veja lá como fala (em tom ameaçador): Eu represento a lei. Eu não invadi a sua casa, eu vim cobrar um tributo que está atrasado.
O Homem: E a saúde? Também é natural ser mal atendido em um hospital ou ficar horas esperando com dores no prontoatendimento?
O Mascarado: Isso não acontece. É invenção da mídia.
O Homem: O que aparece na televisão então é teatro, pura encenação? O Mascarado: É bem provável que seja.
O Homem: E a educação? O Mascarado: Nunca houve tanta gente estudando. Eu mesmo estou na faculdade. Faço direito.
O Homem:Ou torto?
O Mascarado: Torto é você que respira e não paga. Que pensa e não paga pelo pensamento.
O Homem: O quê? Está me dizendo que também vai ser cobrada uma taxa pelo pensamento? O Mascarado: Está em votação no Congresso. Como o governo tem maioria, deve passar em breve.
O Homem: Como regular o pensamento? Como saber quem pensou mais e quem pensou menos? O Mascarado: Provavelmente vão ser nomeados avaliadores que visitarão as famílias e farão entrevistas. Você, por exemplo, reclama muito, questiona demais e isso significa que deverá pagar mais.
O Homem: Só faltava essa. Taxa de Pensamento. Mais um imposto imoral.
O Mascarado (interrompe-o): Nenhum imposto é imoral.
O Homem: Que lógica fabulosa. Quem pensar menos pagará menos. Será um estímulo à passividade e à ignorância. Quem se manifestar mais, participar de protestos reclamando da má qualidade nos serviços como saúde, educação e segurança pagará mais do que aquele que não fala, não lê, não escreve e pensa só um pouquinho.
O Mascarado: Pouquinho não, o essencial. Pensar demais polui o ambiente, alimenta o conflito, a discórdia, a confusão. O pensamento único, a partir de regras bem definidas pelo governo, é favorável a todos.
O Homem: Que ideia mais ditatorial.
O Mascarado: Vivemos numa democracia.
O Homem: Vivemos numa impostocracia.
O Mascarado: Que engraçadinho. Só quando você for taxado exemplarmente, tendo que pagar altos impostos por respirar, por pensar, por questionar, por incomodar é que você ficará quieto e literalmente falido.
O Homem: Vá embora.
O Mascarado: Enquanto conversávamos, (tira da cintura um aparelhinho) eu media a sua respiração, inspirações e expirações, e cheguei a um número. Quando estiver no meu escritório, calcularei quantas vezes você respira por minuto, aí eu multiplico por 60 para atingir uma hora, depois 24 para atingir um dia e, após, por 30, para dar a sua despesa mensal. É simples.
O Homem: E vergonhoso.
O Mascarado: Se não pagar, será desligado até que volte a pagar.
O Homem: Você quer dizer que virão me matar? O Mascarado: Ninguém mata neste país. Aqui não há pena de morte. Simplesmente você será desligado e, quando pagar, será devidamente religado, como acontece com a energia elétrica, a água, o esgoto.
O Homem: Como eu vou sobreviver desligado? O Mascarado: Esse é um outro problema que não cabe a mim resolver. O meu departamento tem a responsabilidade de taxar a respiração e emitir os boletos. O que virá depois será da alçada de um outro funcionário. Tudo bem calculado e organizado. Primamos pela qualidade do nosso serviço.
O Homem (ironicamente): Que qualidade! Um dia não haverá mais população neste país. De tanto pagar taxas e impostos, não sobrará dinheiro para comer. Só os milionários e os bilionários sobreviverão. A minha faxineira, que vem aqui uma vez por semana, não aguenta mais pagar impostos. Não almoça para economizar. Come uma banana e uma goiaba na hora do almoço e depois à noite janta arroz, feijão e farinha. Carne e salada nem pensar. Quando ela vem aqui, sirvo-lhe um almoço decente, mas ela me diz que nas outras casas em que trabalha ninguém lhe serve nada. Se não fossem a banana e a goiaba que ela leva, morreria de fome no meio da faxina. E vocês querem ainda mais? O Mascarado (em tom discursivo): Pelo bem da nação, das instituições e dos milhares de trabalhadores em cargos de confiança, os impostos são cada vez mais necessários. Como manter as mordomias,as folias, as regalias se não forem criadas taxas e mais taxas.
(começa a cantar): Respirar polui o ar.
É preciso cobrar.
Pensar polui o ar.
É preciso cobrar.
Caminhar polui o ar.
É preciso cobrar.
Peidar polui o ar.
É preciso cobrar.
Precisamos de impostos.
Quanto mais, melhor.
O povo aprova.
O povo vota.
O povo agradece.
Um impostinho aqui, outro impostinho ali.
E tudo se resolve.
Nada de reclamar.
Reclamar polui o ar.
É preciso cobrar.
Protestar polui o ar.
É preciso cobrar.
Denunciar polui o ar.
É preciso cobrar, cobrar, cobrar.
Até esgotar a nossa capacidade
De inventar impostos, taxas, impostos,
Taxas, impostos, taxas.
O Homem: (dá um grito): Chega. Fora! Não volte nunca mais.
O Mascarado: Eu não volto, mas outro virá para cumprir as ordens, para cobrar as taxas e para desligar o que precisa ser desligado. Não pagou a luz, fica no escuro, não pagou a água, fica com as torneiras secas, não pagou para respirar, fica sem ar até sufocar.
(volta a cantar): Não pagou o ar
Para respirar
Fica sem ar
Até sufocar.
Se pagar, volta a ligar.
Mas se não der para ligar,
Não tem problema,
Tudo foi feito dentro da lei.
Não há para quem reclamar.
O Homem: A que ponto chegamos. Em pleno século XXI, amarrados à ditadura das taxas, dos impostos, como se fosse uma camisa de força.
O Mascarado: Não seja dramático. E reclame menos. Produza. Produzir é a grande sacada. Você produzindo mais, lucrará mais...
O Homem (interrompe-o) E pagarei mais impostos.
O Mascarado: É assim que funciona. E com a tecnologia controlando cada vez mais os movimentos de cada indivíduo, logo mais colocaremos um chip em cada um e aí não haverá mais jeito de sonegar. Num futuro próximo, será possível, sem risco de cometer erros, medir quantas respirações cada um realiza por dia. O nosso sistema é justo. Cada um tem um ritmo pulmonar próprio. Não seria justo cobrar uma taxa maior de quem respira menos. Mesma coisa se dará com o riso.
O Homem (horrorizado): Imposto de risada? O Mascarado: Vai se chamar imposto do riso. Quem rir mais pagará mais.
O homem (curioso): E se chorar? O Mascarado: Sorrir, chorar, bocejar. Tudo será taxado. Quem boceja muito polui o meio ambiente. Espirro, então, é altamente poluente. Não é justo que quem não espirra, além de sofrer com as bactérias liberadas no ar, pague os mesmos impostos daquele que espirra. Imposto de tosse. Só assim ninguém deixará mais de se vacinar contra a gripe. Imposto de fumaça liberada pelos fumantes. Imposto para todos os fins.
O homem: Se não houver uma revolta geral, uma desobediência civil, estamos perdidos.
O Mascarado: Como ousa? O sistema de captação de impostos e taxas está cada vez se aperfeiçoando mais. Ninguém escapa.
O Homem: E uma taxa indenizatória para quem for assaltado, mal atendido em um hospital, quem tropeçar em um buraco na rua ou na calçada? Não vão criar esse imposto para que o governo pague.
O Mascarado: Não inverta os fatos. Vim aqui para cobrar o imposto da sua respiração. E aproveitei para lhe adiantar sobre os novos impostos que serão criados. Gosto de esclarecer, de comunicar tudo da maneira mais clara e transparente possível para que não paire nenhuma dúvida, para que depois não diga que eu não avisei. Respire menos, ria menos, reclame menos, boceje menos, espirre menos, tussa menos, fale menos. Se você agir assim, no final do mês o seu salário sobrará para pelo menos comer uma pizza de mussarela com a família. Por falar nisso, cadê a sua família? A sua mulher, os filhos, o cachorro, o gato, os passarinhos. Eles também vão ser taxados. Todos os que respiram nessa casa irão pagar imposto. E não adianta dizer não. Quem não pagar será desligado. Como acontece com a água e com a energia elétrica. (olha para o Homem que está totalmente transtornado): Não é justo? (olha para a plateia): Não é justo? Não querem responder? Então é melhor que não digam nada.
(As luzes se apagam e o mascarado olha para a plateia com um ar autoritário).
(Um homem de uns cinquenta anos está sentado em uma cadeira no centro da cena. Um outro homem com o rosto parcialmente coberto com uma espécie de máscara surge na cena de forma repentina e começa a falar): Eu vim cobrar a taxa de respiração. Você inspirou neste mês aproximadamente cinco bilhões de litros de ar da atmosfera e precisa pagar por isso.
O Homem: Como você chega assim sem bater? O que significa isso? Taxa de ar agora? Que novidade extravagante, estratosférica, extraordinária. Não bastam os impostos que eu pago? Oitenta por cento do meu salário vão para impostos, taxas, plano de saúde e seguro. Vou pagar agora pelo ar que respiro? Isso é um absurdo. Esperava tudo, menos isso. E não tem a mínima base legal.
O Mascarado: Todos irão pagar pelo ar que respiram. Esse ar puro. Respirar é uma atitude que suja esse ar tão maravilhoso. O imposto será cobrado para limpar o ar. Pelo bem da natureza e todos os seres.
O Homem: Ar puro?(ele tosse): O ar está poluído com monóxido de carbono ,hidrocarboneto, óxido nitroso, enxofre e fuligem. Fora outros inúmeros poluentes.
O Mascarado: Estudado o meu amigo. Sabe demais. Onde aprendeu essas baboseiras? Foi na escola? Isso é perigoso. Aprender demais não é bom porque ameaça a convivência em sociedade.
O Homem (levantando-se): Não sou seu amigo e não aceito ameaças. Como foi invadindo a minha casa sem mais nem menos? A porta não estava aberta. Como entrou? Só se foi pelas paredes. Que truque é esse?
O Mascarado: Eu sou o homem da taxa e do imposto. Não preciso pedir licença. Não sou uma pessoa, mas uma entidade que representa uma força superior. Eu entro pela parede, pelas janelas fechadas, pela fechadura.
O Homem: É um Deus? O Mascarado: Não exagere. Eu não sou nenhum Deus. No máximo, sou um funcionário dele. Um assessor especial, mas não tenho estabilidade. Meu cargo é de confiança. Tenho que cumprir com a minha missão da melhor maneira para me manter nele.
O Homem: Você na verdade é um impostor e cometeu uma impostura invadindo a minha casa.
O Mascarado: Eu não preciso pedir licença. Eu chego, entro e imponho. É a minha função. Sou pago para isso. Sou o homem dos impostos. E atualmente estou implantando o imposto da respiração. É difícil tornar totalmente claro o motivo da cobrança de imposto tão original. Nunca neste país houve antes um imposto tão criativo. Saiu até no New York Times. Eu apareço na foto. Estou me tornando importante.
O Homem: Que violência. Estou sendo vítima de um assalto. (grita): Socorro! O homem dos impostos invadiu a minha casa, o meu corpo e a minha alma.
O Mascarado: Não tente reagir. Não seja dramático. Todos reclamam, mas acabam pagando. Se você não pagar a taxa de ar, você não poderá respirar mais.
O Homem: Aí eu morro? O Mascarado: Não é inteligente? Quem não respira morre.
O Homem: Como você vai me impedir de respirar se eu não pagar a taxa? O Mascarado: Quem não paga a conta de água tem a água cortada, quem não paga a taxa de ar tem a respiração cortada.
O Homem: De que maneira? O Mascarado: Isso eu não posso afirmar com certeza. O método mais usado é sufocamento.
O Homem (sem se intimidar): Eu e toda a população deveríamos é receber uma indenização pela péssima qualidade do ar, não sofrer uma punição por respirar. Quem polui o ar são as indústrias, os carros, não nossos pobres pulmões.
O Mascarado: Você é um sonhador. Ainda acredita no mundo perfeito, mas não é assim que funciona. Pertencemos a uma época pragmática. As ideologias foram substituídas pelo pragmatismo. Falar em ideologia hoje é o mesmo que imaginar que ainda existem dinossauros nas florestas e até nas ruas.
O Homem: Tudo tem um limite. Em nenhum lugar do mundo há tanta taxa e imposto como aqui. E agora estamos chegando ao cúmulo, ao crime mais vil e intolerável.
O Mascarado: Se não forem cobrados impostos, o país para. A segurança, a saúde, a educação dependem dos impostos pagos. Você não sabe disso? O Homem: Grandissíssimo impostor. Nunca houve tantos furtos de carro, tanta violência. Se houvesse segurança, isso não aconteceria. Pagamos impostos e quem nos livra dos ladrões? Quem nos livra dos péssimos serviços?
O Mascarado: Segurança é um conceito, não necessariamente um fato real. Temos bastante segurança, mas isso não significa que não venham a ocorrer assaltos, furtos, latrocínios. A violência faz parte da natureza humana. Isso nunca mudará. Mas há que segurança, isso é inegável. Eu mesmo estou com três seguranças lá fora me aguardando em caso de alguma reação perigosa. É só dar um assobio que eles entram.
O Homem: Que grande argumento. Pagamos para nos sentirmos seguros, nos fechamos em casas com cerca elétrica, alarme e câmeras e somos invadidos por criminosos como se isso fosse natural. Você também me invadiu, portanto você também é um criminoso.
O Mascarado: Veja lá como fala (em tom ameaçador): Eu represento a lei. Eu não invadi a sua casa, eu vim cobrar um tributo que está atrasado.
O Homem: E a saúde? Também é natural ser mal atendido em um hospital ou ficar horas esperando com dores no prontoatendimento?
O Mascarado: Isso não acontece. É invenção da mídia.
O Homem: O que aparece na televisão então é teatro, pura encenação? O Mascarado: É bem provável que seja.
O Homem: E a educação? O Mascarado: Nunca houve tanta gente estudando. Eu mesmo estou na faculdade. Faço direito.
O Homem:Ou torto?
O Mascarado: Torto é você que respira e não paga. Que pensa e não paga pelo pensamento.
O Homem: O quê? Está me dizendo que também vai ser cobrada uma taxa pelo pensamento? O Mascarado: Está em votação no Congresso. Como o governo tem maioria, deve passar em breve.
O Homem: Como regular o pensamento? Como saber quem pensou mais e quem pensou menos? O Mascarado: Provavelmente vão ser nomeados avaliadores que visitarão as famílias e farão entrevistas. Você, por exemplo, reclama muito, questiona demais e isso significa que deverá pagar mais.
O Homem: Só faltava essa. Taxa de Pensamento. Mais um imposto imoral.
O Mascarado (interrompe-o): Nenhum imposto é imoral.
O Homem: Que lógica fabulosa. Quem pensar menos pagará menos. Será um estímulo à passividade e à ignorância. Quem se manifestar mais, participar de protestos reclamando da má qualidade nos serviços como saúde, educação e segurança pagará mais do que aquele que não fala, não lê, não escreve e pensa só um pouquinho.
O Mascarado: Pouquinho não, o essencial. Pensar demais polui o ambiente, alimenta o conflito, a discórdia, a confusão. O pensamento único, a partir de regras bem definidas pelo governo, é favorável a todos.
O Homem: Que ideia mais ditatorial.
O Mascarado: Vivemos numa democracia.
O Homem: Vivemos numa impostocracia.
O Mascarado: Que engraçadinho. Só quando você for taxado exemplarmente, tendo que pagar altos impostos por respirar, por pensar, por questionar, por incomodar é que você ficará quieto e literalmente falido.
O Homem: Vá embora.
O Mascarado: Enquanto conversávamos, (tira da cintura um aparelhinho) eu media a sua respiração, inspirações e expirações, e cheguei a um número. Quando estiver no meu escritório, calcularei quantas vezes você respira por minuto, aí eu multiplico por 60 para atingir uma hora, depois 24 para atingir um dia e, após, por 30, para dar a sua despesa mensal. É simples.
O Homem: E vergonhoso.
O Mascarado: Se não pagar, será desligado até que volte a pagar.
O Homem: Você quer dizer que virão me matar? O Mascarado: Ninguém mata neste país. Aqui não há pena de morte. Simplesmente você será desligado e, quando pagar, será devidamente religado, como acontece com a energia elétrica, a água, o esgoto.
O Homem: Como eu vou sobreviver desligado? O Mascarado: Esse é um outro problema que não cabe a mim resolver. O meu departamento tem a responsabilidade de taxar a respiração e emitir os boletos. O que virá depois será da alçada de um outro funcionário. Tudo bem calculado e organizado. Primamos pela qualidade do nosso serviço.
O Homem (ironicamente): Que qualidade! Um dia não haverá mais população neste país. De tanto pagar taxas e impostos, não sobrará dinheiro para comer. Só os milionários e os bilionários sobreviverão. A minha faxineira, que vem aqui uma vez por semana, não aguenta mais pagar impostos. Não almoça para economizar. Come uma banana e uma goiaba na hora do almoço e depois à noite janta arroz, feijão e farinha. Carne e salada nem pensar. Quando ela vem aqui, sirvo-lhe um almoço decente, mas ela me diz que nas outras casas em que trabalha ninguém lhe serve nada. Se não fossem a banana e a goiaba que ela leva, morreria de fome no meio da faxina. E vocês querem ainda mais? O Mascarado (em tom discursivo): Pelo bem da nação, das instituições e dos milhares de trabalhadores em cargos de confiança, os impostos são cada vez mais necessários. Como manter as mordomias,as folias, as regalias se não forem criadas taxas e mais taxas.
(começa a cantar): Respirar polui o ar.
É preciso cobrar.
Pensar polui o ar.
É preciso cobrar.
Caminhar polui o ar.
É preciso cobrar.
Peidar polui o ar.
É preciso cobrar.
Precisamos de impostos.
Quanto mais, melhor.
O povo aprova.
O povo vota.
O povo agradece.
Um impostinho aqui, outro impostinho ali.
E tudo se resolve.
Nada de reclamar.
Reclamar polui o ar.
É preciso cobrar.
Protestar polui o ar.
É preciso cobrar.
Denunciar polui o ar.
É preciso cobrar, cobrar, cobrar.
Até esgotar a nossa capacidade
De inventar impostos, taxas, impostos,
Taxas, impostos, taxas.
O Homem: (dá um grito): Chega. Fora! Não volte nunca mais.
O Mascarado: Eu não volto, mas outro virá para cumprir as ordens, para cobrar as taxas e para desligar o que precisa ser desligado. Não pagou a luz, fica no escuro, não pagou a água, fica com as torneiras secas, não pagou para respirar, fica sem ar até sufocar.
(volta a cantar): Não pagou o ar
Para respirar
Fica sem ar
Até sufocar.
Se pagar, volta a ligar.
Mas se não der para ligar,
Não tem problema,
Tudo foi feito dentro da lei.
Não há para quem reclamar.
O Homem: A que ponto chegamos. Em pleno século XXI, amarrados à ditadura das taxas, dos impostos, como se fosse uma camisa de força.
O Mascarado: Não seja dramático. E reclame menos. Produza. Produzir é a grande sacada. Você produzindo mais, lucrará mais...
O Homem (interrompe-o) E pagarei mais impostos.
O Mascarado: É assim que funciona. E com a tecnologia controlando cada vez mais os movimentos de cada indivíduo, logo mais colocaremos um chip em cada um e aí não haverá mais jeito de sonegar. Num futuro próximo, será possível, sem risco de cometer erros, medir quantas respirações cada um realiza por dia. O nosso sistema é justo. Cada um tem um ritmo pulmonar próprio. Não seria justo cobrar uma taxa maior de quem respira menos. Mesma coisa se dará com o riso.
O Homem (horrorizado): Imposto de risada? O Mascarado: Vai se chamar imposto do riso. Quem rir mais pagará mais.
O homem (curioso): E se chorar? O Mascarado: Sorrir, chorar, bocejar. Tudo será taxado. Quem boceja muito polui o meio ambiente. Espirro, então, é altamente poluente. Não é justo que quem não espirra, além de sofrer com as bactérias liberadas no ar, pague os mesmos impostos daquele que espirra. Imposto de tosse. Só assim ninguém deixará mais de se vacinar contra a gripe. Imposto de fumaça liberada pelos fumantes. Imposto para todos os fins.
O homem: Se não houver uma revolta geral, uma desobediência civil, estamos perdidos.
O Mascarado: Como ousa? O sistema de captação de impostos e taxas está cada vez se aperfeiçoando mais. Ninguém escapa.
O Homem: E uma taxa indenizatória para quem for assaltado, mal atendido em um hospital, quem tropeçar em um buraco na rua ou na calçada? Não vão criar esse imposto para que o governo pague.
O Mascarado: Não inverta os fatos. Vim aqui para cobrar o imposto da sua respiração. E aproveitei para lhe adiantar sobre os novos impostos que serão criados. Gosto de esclarecer, de comunicar tudo da maneira mais clara e transparente possível para que não paire nenhuma dúvida, para que depois não diga que eu não avisei. Respire menos, ria menos, reclame menos, boceje menos, espirre menos, tussa menos, fale menos. Se você agir assim, no final do mês o seu salário sobrará para pelo menos comer uma pizza de mussarela com a família. Por falar nisso, cadê a sua família? A sua mulher, os filhos, o cachorro, o gato, os passarinhos. Eles também vão ser taxados. Todos os que respiram nessa casa irão pagar imposto. E não adianta dizer não. Quem não pagar será desligado. Como acontece com a água e com a energia elétrica. (olha para o Homem que está totalmente transtornado): Não é justo? (olha para a plateia): Não é justo? Não querem responder? Então é melhor que não digam nada.
(As luzes se apagam e o mascarado olha para a plateia com um ar autoritário).
terça-feira, 6 de setembro de 2011
OS RATOS DO PODER
(A peça se passa em época não definida, em um país chamado Braséia, que por mais semelhanças tenha com o Brasil, não foi baseada nele. O nome desse país imaginário é só um detalhe sem maior importância. Trata-se de uma fábula política).
Personagens:
Rato 1
Rato 2
Rato 3
Rato 4
(OS 4 personagens usam terno e gravata e se parecem com ratos tanto no rosto quanto nos membros e nos rabos).
Rato 1: Eu não me conformo. Ainda não me enviaram o meu queijo superfaturado deste mês.
Rato 2: Calma, excelência. Já fui informado que dessa vez virá uma tonelada de Roquefort da melhor qualidade. E por um preço bem acima do mercado.
Rato 3: Quanto mais caro, melhor. Porque aí pegamos a nossa parte.
Rato 1: Não dá mais para suportar as denúncias. A imprensa nos trata como se fôssemos ratos.
Ratos 2: E não somos?
Rato 3 (entrando na conversa): Somos políticos de respeito. Não vivemos sem os melhores queijos. Somos nós que representamos esse povo que não serve para nada além de votar em nós a cada quatro anos. Para compensar, temos que ser tratados com os melhores queijos suíços, franceses, holandeses.
Rato 4: E a mala? Quando chega a mala?
Rato 1 (todo feliz): Está a caminho.
Rato 2 (lambendo os beiços): Espero que dessa vez venha mais recheada. Afinal, a minha Ferrari está muito rodada. Preciso comprar uma nova.
Rato 1: E o meu avião particular derrapou na pista semana passada porque também já voou demais. Está na hora de trocá-lo.
Rato 3: E a minha ilha particular está precisando de uma reforma geral. Não consigo dormir de preocupação. Qualquer hora o mar a devora. Preciso construir muros de contenção e isso custa caro.
Rato 2: Não é fácil ser político. Se não tivéssemos esse padrão, ninguém votaria em nós. Os eleitores não confiam em pé-rapado. Eles votam em quem tem jatinho, Ferrari, Mercedes, BMW e come os melhores queijos.
Rato 1: E as melhores lagostas.
Rato 3: E caviar Beluga do Irã.
Rato 2: Eu me considero uma pessoa honesta. Porque, pensando bem, honestidade é um conceito muito relativo. Depois que Einstein desenvolveu a Teoria da Relatividade há mais de cem anos, tudo é tão relativo.
Rato 1: (repete): Tudo tão relativo.
Rato 3: Tudo tão relativo.
Rato 4: Tudo tão relativo.
Rato 2: Sempre que formos acusados de fazer algo errado, que eles chamam de antiético e imoral, temos que nos lembrar da Teoria da Relatividade. Ela nos serve de argumento.
Rato 1: Mas quando aparecem na mídia aquelas denúncias de obras superfaturadas que nunca terminaram?
Rato 2: Podemos alegar que isso também é relativo. Enquanto as obras não terminam, isso significa que elas estão sendo realizadas e, quando ficarem prontas, durarão um tempo maior porque, se já estivessem prontas as novas pistas, por exemplo, elas já estariam se desgastando devido aos veículos pesados que circulariam por elas. Como ainda não terminaram, ninguém pode criticar afirmando que elas estão envelhecendo.
Rato 1: De fato, tudo é relativo.
Relativíssimo.
Rato 3 : E se nos pegarem de novo com as malas cheias de dinheiro em um aeroporto ou em um hotel?
Rato 2 : Falaremos que o dinheiro que está neles é para reformar escolas e hospitais.
Rato 4: E se perguntarem onde?
Rato 2: Daremos um endereço também relativo.
Rato 4: O que significa um endereço relativo?
Rato 2: Que muda de rua e de avenida de acordo com as circunstâncias e as necessidades.
Rato 3: Vossa excelência é brilhante.
Rato 2: Vossa excelência também.
Rato 1: Todos aqui somos brilhantes.
Rato 4: Se não brilhássemos, não estaríamos no topo, comendo os melhores queijos e tomando os melhores vinhos.
Rato 1: No fundo, todos queriam estar na nossa pele.
Rato 2: De ratos, excelência?
Rato 1: Não seja inconveniente. Não precisa lembrar esse mero detalhe. Precisamos fazer uma plástica. Se for em um bom cirurgião, ninguém perceberá que somos roedores.
Rato 3 : Fala baixo. Ninguém pode nos ouvir. E disfarçamos tão bem a nossa condição que quase ninguém percebe.
Rato 4: O problema é o rabo.
Rato 2 (repete): O problema é o rabo.
Rato 1: Podemos retirá-lo.
Rato 3: E se for fatal?
Rato 4: Toda cirurgia envolve certo risco. E o perigo é perdermos totalmente a nossa identidade.
Rato 2: É melhor não mexer.
Rato 1 (concorda): É melhor não mexer.
Rato 3: Se chegamos até aqui, nessa condição magnífica, justamente porque somos mamíferos roedores da melhor linhagem , por que iremos agora negar a nossa origem?
Rato 1: Aí eu discordo, excelência. Nós nos tornamos roedores depois. Não nascemos assim.
Rato 2 (espantado): Não nascemos assim?
Rato 4: Com certeza não. Mas aprendemos ao longo da vida a viver essa mudança incrível. Temos uma condição muito especial.
Rato 3: Mudamos para melhor.
Rato 4: Sem dúvida, para melhor. Quantos gostariam de estar no nosso lugar, mas não têm know-how para isso. Para ser roedor profissional, de estirpe, é preciso ter vocação.
Rato 1: Vocação nós temos.
Rato 2: Vocação nós temos.
Rato 3(com orgulho): E que vocação.
Rato 4: Vocação é vocação. Eu particularmente sou muito bom nisso.
Rato 1: Nisso o quê?
Rato 4: Em desvio de verbas. Sou o campeão. Faço de uma tal maneira que quando a imprensa percebe e denuncia, faltam provas para que nos peguem. Fica tudo no terreno dos indícios. Deixamos pouquíssimos rastos. Insuficientes.
Rato 3: Já a minha especialidade é negociar com as empreiteiras o preço. Superfaturamento é comigo mesmo. Que ninguém nos ouça. Um viaduto que custaria um milhão passa a custar 5. É o milagre da multiplicação dos preços. Dos viadutos, das pontes, dos edifícios públicos.
Rato 2: Eu sou bom na hora de receber a mercadoria.
Rato 1: Você quer dizer o queijo?
Rato 2 (ri cinicamente): O queijo, a bufunfa, o tesouro, os valores, diga como quiser.
Rato 1: E eu sou o genérico do pedaço. Faço de tudo e muito bem. Ser especialista só em uma área pode complicar quando não estamos juntos. Temos que saber nos virar sozinhos nas emergências.
Rato 2: Se bem que nunca estamos sozinhos. O nosso setor só cresce. Esse é o problema. Quanto mais cresce, mais precisamos faturar porque temos família para sustentar.
Rato 3: E carro, helicóptero, mansão, jatinho. É uma família muito grande.
Rato 4: E queijo.
Rato 1: É claro. Em primeiro lugar, o queijo.
Rato 2: Gruyere, Camembert, Roquefort, Brie.
Rato 3: Não vivemos sem o melhor queijo.
Rato 2: Ninguém pode dizer que não temos bom gosto.
Rato 1: Por falar em bom gosto, quando vamos para Las Vegas?
Rato 2: Eu prefiro uma temporada em Mônaco.
Rato 3: Eu amo Paris.
Rato 4: Que tal um resort no Nordeste?
Rato 1: Que pobreza. Ratos que pensam pequeno nunca chegarão ao paraíso.
(O rato 4 começa a tossir)
Rato 4: Estou sentindo cheiro de raticida.
Rato 2: Vira essa boca para lá.
Rato 3: Eu tomei antídoto.
Rato 1: Eu também. O melhor antídoto contra os raticidas é armar planos cada vez mais sofisticados. Aqui em Braseia falam tanto em combater a corrupção, mas tudo não passa de especulação. A nossa rede é forte.
Rato 3: À prova de raticida, de ratoeira, de qualquer produto ou arma que possa nos prejudicar. Nascemos no país certo.
Rato 2: Em Braseia estamos garantidos. Temos um futuro promissor pela frente.
Rato 1: Enquanto a Justiça for lenta, ninguém nos pegará.
Rato 4: Somos muito competentes.
(Uma fumaça toma conta do palco. Os quatro ratos perdem o equilíbrio, caem, depois de um tempo se levantam ainda tontos, dançando uma dança estranha).
Rato 1: Estão querendo nos pegar.
Rato 2: O cerco está aumentando.
Rato 3: Vocês estão com medo?
Rato 4: Medo? Não passa de pressão para nos intimidar.
Rato 1: Quantos da nossa espécie humana roedora estão na cadeia?
Rato 2: Dois, três no máximo.
Rato 4: Podem até nos prender, mas em poucos dias estamos livres, prontos para comer os melhores queijos e tomar os melhores vinhos.
Rato 2: A sorte está do nosso lado.
Rato 1: O nosso destino é esse. Ganhar mais e mais para o bem de nossa família.
Rato 3: Você não sente às vezes um pouco de culpa?
Rato 1: Culpa de quê? De ser feliz? Você também não sente. Se sentisse, seria um degenerado e não poderia pertencer ao nosso grupo.
Rato 3: É claro que eu não sinto. Culpa de fazer tudo bem feito?
(Desce uma mala de cima do palco).
(O Rato 2 abre a mala e vem até os outros distribuindo dinheiro):
Rato 2: Divirtam-se. O nosso negócio só prospera.
Rato 1: (cheira o dinheiro): Cheirinho de nota nova.
Rato 3 (coloca no bolso e na cueca): O meu corpo precisa desse contato íntimo. Faz bem para a saúde.
Rato 4: Esse é o melhor esporte do mundo. (Pega as notas): Colher dinheiro. Não dá em árvore, mas é como se fosse. As malas são como árvores frutíferas para nós. E elas dão frutos em todas as estações. Não sofremos com a entressafra.
(Desce outra mala. Os 4 ratos correm para abrir a mala cheia de queijos):
Rato 1: Tem queijo para todos.
Rato 2: Para todos nós, você quer dizer.
Rato 1: Sim, nós somos todos. Todos os que participam do nosso banquete, das nossas traquinagens, do nosso trabalho, do nosso esforço descomunal para nos mantermos no topo.
Rato 3: Não é fácil, mas nós sabemos como fazer.
Rato 4: Temos talento.
Rato 1: Precisamos pensar na próxima eleição.
Rato 2: Já está no papo.
Rato 1: Mas não podemos nos descuidar.
Rato 3: Fazer promessas como se fôssemos cumpri-las. (dá uma risada).
Rato 4: Fazer promessas é fundamental.
Rato 3: Não cumpri-las também.
Rato 2: Porque se elas forem cumpridas não sobra nada para nós.
Rato 1: E queremos tudo.
Rato 3: Merecemos tudo.
Rato 2: Não deixamos por menos. Temos que honrar a nossa estirpe. Somos ratos nobres.
Rato 1: De sangue azul. Pensando bem, herdamos de nossos antepassados essa sabedoria.
Rato 2: Acho que é isso mesmo. Temos tradição.
Rato 3: E que não venham dizer o contrário. Queremos só respeito.
Rato 1: Nada além disso.
(Ouvem gritos de fora do palco):
-Ladrões, fora!
-Ladrões, fora!
-Corruptos!
Rato 1: Você está ouvindo isso?
Rato 2: Estou.
Rato 3: Mas não é conosco.
Rato 4: Não pode ser.
Rato 1: É só não nos importarmos que passa.
Rato 2: Já passou.
Rato 3: Eles esquecem rápido.
Rato 4: E nós seguimos em frente.
Rato 1: Comendo os melhores queijos.
Rato 2: Comprando os melhores carros.
Rato 3: Bebendo os melhores vinhos.
Rato 2:Sem que nada nos intimide.
Rato 1: Seguimos em frente. Cada vez mais prósperos e realizados.
(Ficam em cena sorrindo de forma cínica, sem se importar com mais nada. Comem alguns pedaços de queijo).
Rato 2: Qual é a moral da história? Não podemos sair de cena sem apresentar uma moral?
Rato 1: Moral? Para que moral? Que papo mais careta, sem cabimento.
Rato 3: Somos personagens de uma fábula. Você já viu fábula sem moral?
Rato 4: Moral. Agora nos pegaram.
Rato 1: Não. Ninguém nos pega. Somos inteligentes. Podemos inventar não só uma moral, mas várias. Tudo não é relativo? Até a moral é. A minha moral é: Só não se dá bem na vida quem é tonto.
Rato 2: É uma moralzinha razoável. Vou dizer a minha: Quem não superfatura acaba sendo superfaturado.
Rato 3: Você sempre foi bom em trocadilhos. A minha moral é: Ratos espertos nenhuma ratoeira pega.
Rato 4: A minha moral é: Muitos têm a honra de sustentar o sucesso de poucos.
Rato 1: É moral isso?
Rato 4: Depende do ponto de vista. Somos todos a favor da moral, da família, dos bons costumes, acreditamos em Deus. Somos a própria moral.
Rato 2: A moral encarnada. Somos incompreendidos, mas o que importa é que temos a consciência tranquila.
Rato 3: Nada nos perturba.
Rato 1: De fato, quanto mais nos atacam, mais nos damos bem. Ganhamos mais força.
Rato 2: Temos energia sobrando.
Rato 4: Para continuarmos no topo por mais dez, vinte, trinta, cinquenta, cem anos.
Rato 1: Até a eternidade.
Rato 2: Somos eternos.
Rato 3: Somos eternos.
Rato 4: Somos eternos.
(Parece que estão em um estado sublime, compenetrados, acima do bem e do mal).
(Peça escrita em dois dias).
Personagens:
Rato 1
Rato 2
Rato 3
Rato 4
(OS 4 personagens usam terno e gravata e se parecem com ratos tanto no rosto quanto nos membros e nos rabos).
Rato 1: Eu não me conformo. Ainda não me enviaram o meu queijo superfaturado deste mês.
Rato 2: Calma, excelência. Já fui informado que dessa vez virá uma tonelada de Roquefort da melhor qualidade. E por um preço bem acima do mercado.
Rato 3: Quanto mais caro, melhor. Porque aí pegamos a nossa parte.
Rato 1: Não dá mais para suportar as denúncias. A imprensa nos trata como se fôssemos ratos.
Ratos 2: E não somos?
Rato 3 (entrando na conversa): Somos políticos de respeito. Não vivemos sem os melhores queijos. Somos nós que representamos esse povo que não serve para nada além de votar em nós a cada quatro anos. Para compensar, temos que ser tratados com os melhores queijos suíços, franceses, holandeses.
Rato 4: E a mala? Quando chega a mala?
Rato 1 (todo feliz): Está a caminho.
Rato 2 (lambendo os beiços): Espero que dessa vez venha mais recheada. Afinal, a minha Ferrari está muito rodada. Preciso comprar uma nova.
Rato 1: E o meu avião particular derrapou na pista semana passada porque também já voou demais. Está na hora de trocá-lo.
Rato 3: E a minha ilha particular está precisando de uma reforma geral. Não consigo dormir de preocupação. Qualquer hora o mar a devora. Preciso construir muros de contenção e isso custa caro.
Rato 2: Não é fácil ser político. Se não tivéssemos esse padrão, ninguém votaria em nós. Os eleitores não confiam em pé-rapado. Eles votam em quem tem jatinho, Ferrari, Mercedes, BMW e come os melhores queijos.
Rato 1: E as melhores lagostas.
Rato 3: E caviar Beluga do Irã.
Rato 2: Eu me considero uma pessoa honesta. Porque, pensando bem, honestidade é um conceito muito relativo. Depois que Einstein desenvolveu a Teoria da Relatividade há mais de cem anos, tudo é tão relativo.
Rato 1: (repete): Tudo tão relativo.
Rato 3: Tudo tão relativo.
Rato 4: Tudo tão relativo.
Rato 2: Sempre que formos acusados de fazer algo errado, que eles chamam de antiético e imoral, temos que nos lembrar da Teoria da Relatividade. Ela nos serve de argumento.
Rato 1: Mas quando aparecem na mídia aquelas denúncias de obras superfaturadas que nunca terminaram?
Rato 2: Podemos alegar que isso também é relativo. Enquanto as obras não terminam, isso significa que elas estão sendo realizadas e, quando ficarem prontas, durarão um tempo maior porque, se já estivessem prontas as novas pistas, por exemplo, elas já estariam se desgastando devido aos veículos pesados que circulariam por elas. Como ainda não terminaram, ninguém pode criticar afirmando que elas estão envelhecendo.
Rato 1: De fato, tudo é relativo.
Relativíssimo.
Rato 3 : E se nos pegarem de novo com as malas cheias de dinheiro em um aeroporto ou em um hotel?
Rato 2 : Falaremos que o dinheiro que está neles é para reformar escolas e hospitais.
Rato 4: E se perguntarem onde?
Rato 2: Daremos um endereço também relativo.
Rato 4: O que significa um endereço relativo?
Rato 2: Que muda de rua e de avenida de acordo com as circunstâncias e as necessidades.
Rato 3: Vossa excelência é brilhante.
Rato 2: Vossa excelência também.
Rato 1: Todos aqui somos brilhantes.
Rato 4: Se não brilhássemos, não estaríamos no topo, comendo os melhores queijos e tomando os melhores vinhos.
Rato 1: No fundo, todos queriam estar na nossa pele.
Rato 2: De ratos, excelência?
Rato 1: Não seja inconveniente. Não precisa lembrar esse mero detalhe. Precisamos fazer uma plástica. Se for em um bom cirurgião, ninguém perceberá que somos roedores.
Rato 3 : Fala baixo. Ninguém pode nos ouvir. E disfarçamos tão bem a nossa condição que quase ninguém percebe.
Rato 4: O problema é o rabo.
Rato 2 (repete): O problema é o rabo.
Rato 1: Podemos retirá-lo.
Rato 3: E se for fatal?
Rato 4: Toda cirurgia envolve certo risco. E o perigo é perdermos totalmente a nossa identidade.
Rato 2: É melhor não mexer.
Rato 1 (concorda): É melhor não mexer.
Rato 3: Se chegamos até aqui, nessa condição magnífica, justamente porque somos mamíferos roedores da melhor linhagem , por que iremos agora negar a nossa origem?
Rato 1: Aí eu discordo, excelência. Nós nos tornamos roedores depois. Não nascemos assim.
Rato 2 (espantado): Não nascemos assim?
Rato 4: Com certeza não. Mas aprendemos ao longo da vida a viver essa mudança incrível. Temos uma condição muito especial.
Rato 3: Mudamos para melhor.
Rato 4: Sem dúvida, para melhor. Quantos gostariam de estar no nosso lugar, mas não têm know-how para isso. Para ser roedor profissional, de estirpe, é preciso ter vocação.
Rato 1: Vocação nós temos.
Rato 2: Vocação nós temos.
Rato 3(com orgulho): E que vocação.
Rato 4: Vocação é vocação. Eu particularmente sou muito bom nisso.
Rato 1: Nisso o quê?
Rato 4: Em desvio de verbas. Sou o campeão. Faço de uma tal maneira que quando a imprensa percebe e denuncia, faltam provas para que nos peguem. Fica tudo no terreno dos indícios. Deixamos pouquíssimos rastos. Insuficientes.
Rato 3: Já a minha especialidade é negociar com as empreiteiras o preço. Superfaturamento é comigo mesmo. Que ninguém nos ouça. Um viaduto que custaria um milhão passa a custar 5. É o milagre da multiplicação dos preços. Dos viadutos, das pontes, dos edifícios públicos.
Rato 2: Eu sou bom na hora de receber a mercadoria.
Rato 1: Você quer dizer o queijo?
Rato 2 (ri cinicamente): O queijo, a bufunfa, o tesouro, os valores, diga como quiser.
Rato 1: E eu sou o genérico do pedaço. Faço de tudo e muito bem. Ser especialista só em uma área pode complicar quando não estamos juntos. Temos que saber nos virar sozinhos nas emergências.
Rato 2: Se bem que nunca estamos sozinhos. O nosso setor só cresce. Esse é o problema. Quanto mais cresce, mais precisamos faturar porque temos família para sustentar.
Rato 3: E carro, helicóptero, mansão, jatinho. É uma família muito grande.
Rato 4: E queijo.
Rato 1: É claro. Em primeiro lugar, o queijo.
Rato 2: Gruyere, Camembert, Roquefort, Brie.
Rato 3: Não vivemos sem o melhor queijo.
Rato 2: Ninguém pode dizer que não temos bom gosto.
Rato 1: Por falar em bom gosto, quando vamos para Las Vegas?
Rato 2: Eu prefiro uma temporada em Mônaco.
Rato 3: Eu amo Paris.
Rato 4: Que tal um resort no Nordeste?
Rato 1: Que pobreza. Ratos que pensam pequeno nunca chegarão ao paraíso.
(O rato 4 começa a tossir)
Rato 4: Estou sentindo cheiro de raticida.
Rato 2: Vira essa boca para lá.
Rato 3: Eu tomei antídoto.
Rato 1: Eu também. O melhor antídoto contra os raticidas é armar planos cada vez mais sofisticados. Aqui em Braseia falam tanto em combater a corrupção, mas tudo não passa de especulação. A nossa rede é forte.
Rato 3: À prova de raticida, de ratoeira, de qualquer produto ou arma que possa nos prejudicar. Nascemos no país certo.
Rato 2: Em Braseia estamos garantidos. Temos um futuro promissor pela frente.
Rato 1: Enquanto a Justiça for lenta, ninguém nos pegará.
Rato 4: Somos muito competentes.
(Uma fumaça toma conta do palco. Os quatro ratos perdem o equilíbrio, caem, depois de um tempo se levantam ainda tontos, dançando uma dança estranha).
Rato 1: Estão querendo nos pegar.
Rato 2: O cerco está aumentando.
Rato 3: Vocês estão com medo?
Rato 4: Medo? Não passa de pressão para nos intimidar.
Rato 1: Quantos da nossa espécie humana roedora estão na cadeia?
Rato 2: Dois, três no máximo.
Rato 4: Podem até nos prender, mas em poucos dias estamos livres, prontos para comer os melhores queijos e tomar os melhores vinhos.
Rato 2: A sorte está do nosso lado.
Rato 1: O nosso destino é esse. Ganhar mais e mais para o bem de nossa família.
Rato 3: Você não sente às vezes um pouco de culpa?
Rato 1: Culpa de quê? De ser feliz? Você também não sente. Se sentisse, seria um degenerado e não poderia pertencer ao nosso grupo.
Rato 3: É claro que eu não sinto. Culpa de fazer tudo bem feito?
(Desce uma mala de cima do palco).
(O Rato 2 abre a mala e vem até os outros distribuindo dinheiro):
Rato 2: Divirtam-se. O nosso negócio só prospera.
Rato 1: (cheira o dinheiro): Cheirinho de nota nova.
Rato 3 (coloca no bolso e na cueca): O meu corpo precisa desse contato íntimo. Faz bem para a saúde.
Rato 4: Esse é o melhor esporte do mundo. (Pega as notas): Colher dinheiro. Não dá em árvore, mas é como se fosse. As malas são como árvores frutíferas para nós. E elas dão frutos em todas as estações. Não sofremos com a entressafra.
(Desce outra mala. Os 4 ratos correm para abrir a mala cheia de queijos):
Rato 1: Tem queijo para todos.
Rato 2: Para todos nós, você quer dizer.
Rato 1: Sim, nós somos todos. Todos os que participam do nosso banquete, das nossas traquinagens, do nosso trabalho, do nosso esforço descomunal para nos mantermos no topo.
Rato 3: Não é fácil, mas nós sabemos como fazer.
Rato 4: Temos talento.
Rato 1: Precisamos pensar na próxima eleição.
Rato 2: Já está no papo.
Rato 1: Mas não podemos nos descuidar.
Rato 3: Fazer promessas como se fôssemos cumpri-las. (dá uma risada).
Rato 4: Fazer promessas é fundamental.
Rato 3: Não cumpri-las também.
Rato 2: Porque se elas forem cumpridas não sobra nada para nós.
Rato 1: E queremos tudo.
Rato 3: Merecemos tudo.
Rato 2: Não deixamos por menos. Temos que honrar a nossa estirpe. Somos ratos nobres.
Rato 1: De sangue azul. Pensando bem, herdamos de nossos antepassados essa sabedoria.
Rato 2: Acho que é isso mesmo. Temos tradição.
Rato 3: E que não venham dizer o contrário. Queremos só respeito.
Rato 1: Nada além disso.
(Ouvem gritos de fora do palco):
-Ladrões, fora!
-Ladrões, fora!
-Corruptos!
Rato 1: Você está ouvindo isso?
Rato 2: Estou.
Rato 3: Mas não é conosco.
Rato 4: Não pode ser.
Rato 1: É só não nos importarmos que passa.
Rato 2: Já passou.
Rato 3: Eles esquecem rápido.
Rato 4: E nós seguimos em frente.
Rato 1: Comendo os melhores queijos.
Rato 2: Comprando os melhores carros.
Rato 3: Bebendo os melhores vinhos.
Rato 2:Sem que nada nos intimide.
Rato 1: Seguimos em frente. Cada vez mais prósperos e realizados.
(Ficam em cena sorrindo de forma cínica, sem se importar com mais nada. Comem alguns pedaços de queijo).
Rato 2: Qual é a moral da história? Não podemos sair de cena sem apresentar uma moral?
Rato 1: Moral? Para que moral? Que papo mais careta, sem cabimento.
Rato 3: Somos personagens de uma fábula. Você já viu fábula sem moral?
Rato 4: Moral. Agora nos pegaram.
Rato 1: Não. Ninguém nos pega. Somos inteligentes. Podemos inventar não só uma moral, mas várias. Tudo não é relativo? Até a moral é. A minha moral é: Só não se dá bem na vida quem é tonto.
Rato 2: É uma moralzinha razoável. Vou dizer a minha: Quem não superfatura acaba sendo superfaturado.
Rato 3: Você sempre foi bom em trocadilhos. A minha moral é: Ratos espertos nenhuma ratoeira pega.
Rato 4: A minha moral é: Muitos têm a honra de sustentar o sucesso de poucos.
Rato 1: É moral isso?
Rato 4: Depende do ponto de vista. Somos todos a favor da moral, da família, dos bons costumes, acreditamos em Deus. Somos a própria moral.
Rato 2: A moral encarnada. Somos incompreendidos, mas o que importa é que temos a consciência tranquila.
Rato 3: Nada nos perturba.
Rato 1: De fato, quanto mais nos atacam, mais nos damos bem. Ganhamos mais força.
Rato 2: Temos energia sobrando.
Rato 4: Para continuarmos no topo por mais dez, vinte, trinta, cinquenta, cem anos.
Rato 1: Até a eternidade.
Rato 2: Somos eternos.
Rato 3: Somos eternos.
Rato 4: Somos eternos.
(Parece que estão em um estado sublime, compenetrados, acima do bem e do mal).
(Peça escrita em dois dias).
terça-feira, 23 de agosto de 2011
DE DENTRO DA BOCA
(No palco, uma cadeira, parecida com as de dentista, uma mulher de aproximadamente trinta anos com um jaleco branco e , sentado, de boca aberta, um homem de uns cinquenta anos).
A terapeuta: Abra a boca. Logo. Eu não tenho tempo a perder. Cada minuto significa a possibilidade de descobrirmos juntos bloqueios que você traz dentro de você desde que nasceu.
O paciente: Afinal, você é terapeuta ou é dentista?
A terapeuta (enérgica, um tanto irritada): É claro que eu sou terapeuta.
O paciente: Aqui não tem divã, mas cadeira de dentista. Não vim ao lugar errado? Eu sempre quis fazer terapia, mas com divã. Sem divã não tem clima. (Faz que vai levantar da cadeira). É como ir a um restaurante e lhe servirem a comida em uma calota ou em uma peneira.
A terapeuta: (enérgica). Sente-se. Como é exagerado o meu cliente. Todos estranham na primeira consulta. Depois se acostumam. Faz parte do jogo. Abra a boca.
O paciente (abre a boca o máximo que consegue).
A terapeuta: Abra mais. (coloca a mão com luva dentro da boca do paciente).
O paciente: Assim vai me dar uma cãibra. E que jogo é esse? Quem ganha esse jogo? E quem perde? Eu estou pagando. E não é pouco. Isso significa que eu perco.
A terapeuta: Muito bom. O meu paciente tem cãibra no maxilar. Algum trauma que traz da infância. E reclama, tem voz. (grita): VOZ.
O paciente: É problema do maxilar mesmo. Sofri um acidente quando tinha dezenove anos e quebrei o maxilar. Nem tudo é psicológico. Se eu fraturo uma perna e venho aqui depois de algum tempo e reclamo de dor, você vai também me dizer que é psicológico?
A terapeuta: Não tente simplificar as coisas. Quase todas as dores e cãibras têm um fundo psicológico. Vou começar a extrair pela sua boca a maioria dos seus traumas. Olha, você está com um dente cariado, mas isso não é da minha alçada. Eu sou TERAPEUTA. Mantenha a boca aberta.
O paciente: (Fecha a boca) o que você quer extrair de mim?
A terapeuta: Tudo que está bloqueado. (olha dentro da boca). Você respira com dificuldade. Nunca deve ter se revoltado contra os seus pais quando eles lhe disseram: -Cala a boca. Nunca deve ter falado mais alto com o seu patrão.
O paciente: Eu quero falar. É a minha vez.
A terapeuta: (ordena): Cala a boca.
O paciente: Não calo. Quem é você para me mandar calar a boca? Não é meu pai nem minha mãe.
A terapeuta: Confessou. Estamos indo bem. Avançando já na primeira sessão. (olha para a plateia). Foi reprimido na infância. Sempre que fazia uma pergunta, era podado. Não é verdade? Tem coragem de me desmentir?
O paciente: Posso lhe fazer uma pergunta?
A terapeuta: Não. Aqui quem pergunta sou eu. Abra a boca.
O paciente: ( Abre a boca).
A terapeuta(retira algo da boca do cliente): O que é isso?
O paciente: Um fio.
A terapeuta: Não é um fio comum. Um fio dental. É um fio mental.
O paciente: Isso não existe. A senhora está brincando comigo. Fio mental. Só faltava essa? Um fio que me liga aos meus traumas. Que terapeuta original. Pelo menos isso a senhora é.
A terapeuta: Agora me chamou de senhora. Por que esse respeito repentino? Você não me disse que eu não sou nem seu pai nem sua mãe? Reaja. (Abre a boca do paciente e coloca um dedo dentro dela).
(O paciente morde o seu dedo).
A terapeuta: Por que você fez isso? Você não tem direito de me morder.
O paciente: Não falou para eu reagir? Essa fala é perigosa. Nunca diga a um paciente para ele reagir. Se eu estivesse armado, e se eu fosse violento?
A terapeuta: A minha criança está aprendendo. Eu sei lidar com os meus pacientes. E conheço cada um deles já na primeira sessão. Eu nunca falaria para um psicopata reagir. Você não é um deles.
O paciente: Nunca se sabe. (irritado) E eu não sou a sua criança. Sou adulto. Um cara maduro. Consciente de suas responsabilidades. Sou um homem sério.
A terapeuta: A minha criança está reagindo. Diz que não é minha criança. (Para ele) Prova então que não é minha criança.
O paciente: Eu sou um adulto estressado que veio fazer uma consulta para vencer essas angústias naturais nesses tempos tão malucos. Não quero ir a fundo, à infância, mexer com buracos já bem tampados.
A terapeuta: Eles fedem mesmo tampados. E não estão tão bem tampados como você imagina.. Abra a boca. (Olha dentro dela): Você tem mil fossas escuras dentro de você que precisam ser eliminadas, não tampadas.
O paciente (levanta-se): Minha terapeuta fala bonito. É culta. Isso para justificar os 500 reais que eu pago por sessão. Fossas escuras, uma porra. Se eu tenho, você tem também. Você não é melhor nem mais normal do que eu. (pergunta para a plateia). Será que ela é normal? Não sei onde eu li. Alguém disse que de perto ninguém é normal. E ser normal também é o ó.
A terapeuta: Magnífico. Não perdeu a ironia. Quem não consegue ser irônico é porque está morto. O meu paciente está vivo. Eu também estou viva. Nem quero ser normal. A questão não é essa. O importante é se sentir bem, menos angustiado, menos estressado.
O paciente: (concluindo): Se eu estivesse morto, não viria aqui. Os mortos não fazem terapia. A não ser que seja terapia espírita.
A terapeuta: Sente-se.
(O paciente senta-se na cadeira).
A terapeuta: Obediente o meu menino.
O paciente: Fui obediente até os dez anos. Aos 11, me revoltei, mas voltei a ser obediente aos 20 quando me casei. A obediência leva ao comodismo. Nesse país há muitos obedientes. Pagamos altíssimos impostos e na hora que deveria ser de desobedecer, todos pagam como carneirinhos que estivessem próximos da tosquia ou do sacrifício.
A terapeuta: Estamos evoluindo. Abra a boca.
O paciente (levanta-se e ordena): -Fecha a boca. Agora quem fala sou eu. Em casa, só a minha mulher fala. E os meus filhos. No trabalho, sou um mero burocrata. Não tenho poder. Eu vou falar tudo o que eu sinto. Ninguém me segura.
A terapeuta: O que mais te oprime?
O paciente: Não poder ser quem eu sou. Nas reuniões, só digo sim, senhor ao meu chefe. Recebo até que um bom salário, mas não tenho voz. (grita)Eu não tenho voz.
A terapeuta: CALE-SE.
O paciente: Eu não me calo. Quem é você para me dar ordens? É o meu chefe? É só minha terapeuta. SENTE-SE.
(A terapeuta assustada senta-se na cadeira).
ABRA A BOCA. Agora eu é que mando. (tira uma corda da pasta e amarra a terapeuta).
Você é o meu chefe que perdeu a pose e o poder. Ou melhor ainda, você não passa de uma impostora. Papéis invertidos. Eu sou o que está por cima agora. Abra a boca, doutora. (Enfia a mão na sua boca). Que boca úmida. Que boca mais nervosa. Treme sem parar. Até parece que eu sou o terapeuta. Faz de conta que a senhora é minha paciente, quero dizer, você. Como foi a sua infância?
Terapeuta: Foi terrível. (Fala tensa). Fui rejeitada pelos meus pais biológicos. E os pais que me adotaram me tratavam com a máxima frieza.
Paciente: Fale mais, desembucha. Solta tudo.
Terapeuta: Como vou soltar tudo se estou presa? Você me amarrou. E há uma outra prisão que eu não sabia que estava em mim. Está vendo o que você fez? Está me desestruturando. Eu é que sou a terapeuta. Não você. Os meus fantasmas estavam muito bem guardados e você os libertou. E agora?
Paciente: Eu é que pergunto. Parecia tão segura. Querendo extrair o meu íntimo. Toda invasão é perigosa e pode provocar consequências imprevisíveis. Abra a boca.
Terapeuta: Não consigo. Estou travada.
Paciente (ironicamente): É só destravar. Fale mais da sua família, aquela que a adotou. Fale mais, fale mais.
Terapeuta: O meu irmão adotivo tentou me matar, mas eu me vinguei. Coloquei pimenta no sorvete dele.
Paciente: Que crueldade. Que perversidade.
(A terapeuta, de boca aberta, está assustada).
Terapeuta: Você está fora de controle.
Paciente: Agora que eu assumi o controle, você me diz que eu estou fora de controle.
Agora é que eu estou no controle. Prendi aquela que tentou extrair o mais profundo de mim. Conseguiu, mas com consequências. Não se abre um baú velho, que ficou fechado décadas, imaginando que não haja nenhuma aranha caranguejeira ou uma cobra escondida. Todos os bichos guardados, aprisionados, só esperam uma oportunidade para que venham à tona. Eu tenho um zoológico dentro. E você também.
(Começa a declamar):
Cobras, lagartos, serpentes, tigres, elefantes, hipopótamos, rinocerontes, além dos monstros, mulas sem cabeça, dragões, seres imaginários de dez cabeças. Todos temos bichos guardados. Centenas, milhares, milhões. (olha para uma determinada pessoa na plateia).
Você não?
(Ele ordena): Abra a boca.
A Terapeuta: Você está quebrando uma ordem de forma perigosa. Quem deve abrir a boca é você, mas sentado aqui. Não eu. Se eu lhe contar o que foi a minha vida, ficarei totalmente sem força, desprotegida. E sem a minha capa protetora não poderei mais ser a terapeuta. E eu só consigo ser isso. (quase chora): Eu não sirvo para trabalhar em um restaurante como chef, garçonete ou balconista. Eu não sirvo para isso. Só sei ser terapeuta.
Paciente: Ninguém é só terapeuta, ou só engenheiro, ou só funcionário de um escritório, bancário, dentista, médico. Antes de tudo, somos pessoas.
Terapeuta: Fui eu que fiz você descobrir isso.
Paciente: Não, fui eu. Eu é que escolhi vir aqui. Eu é que procurei você. Não foi você que me procurou.
Terapeuta: Me solte agora.
Paciente: Você está solta.
Terapeuta: Você me amarrou.
Paciente (com energia): Mentira. Os terapeutas geralmente são muito mais amarrados e complicados do que os clientes porque carregam consigo histórias que não são as deles e não conseguem processá-las.
Terapeuta: Você está querendo mesmo assumir o meu lugar. Impostor. Invasor. Você já pagou a consulta. Pode ir embora. Eu lhe dou alta.
Paciente: Que maravilha. Uma sessão milagrosa. Mas, se funcionou, fui eu que me curei. Abra a boca.
Terapeuta: Não abro. (olha para o relógio na parede): A sessão terminou. Está na hora do novo paciente chegar.
Paciente( desamarra a terapeuta):Desculpe, eu pensei que ainda tínhamos mais alguns minutos.
Terapeuta ( A terapeuta levanta da cadeira e se recompõe) (cumprimenta-o): Até a próxima sessão.
Paciente: (cumprimenta-a): Até a próxima. (Sai e a terapeuta senta-se na cadeira para relaxar).
(Peça escrita de 23 de agosto a 5 de setembro).
A terapeuta: Abra a boca. Logo. Eu não tenho tempo a perder. Cada minuto significa a possibilidade de descobrirmos juntos bloqueios que você traz dentro de você desde que nasceu.
O paciente: Afinal, você é terapeuta ou é dentista?
A terapeuta (enérgica, um tanto irritada): É claro que eu sou terapeuta.
O paciente: Aqui não tem divã, mas cadeira de dentista. Não vim ao lugar errado? Eu sempre quis fazer terapia, mas com divã. Sem divã não tem clima. (Faz que vai levantar da cadeira). É como ir a um restaurante e lhe servirem a comida em uma calota ou em uma peneira.
A terapeuta: (enérgica). Sente-se. Como é exagerado o meu cliente. Todos estranham na primeira consulta. Depois se acostumam. Faz parte do jogo. Abra a boca.
O paciente (abre a boca o máximo que consegue).
A terapeuta: Abra mais. (coloca a mão com luva dentro da boca do paciente).
O paciente: Assim vai me dar uma cãibra. E que jogo é esse? Quem ganha esse jogo? E quem perde? Eu estou pagando. E não é pouco. Isso significa que eu perco.
A terapeuta: Muito bom. O meu paciente tem cãibra no maxilar. Algum trauma que traz da infância. E reclama, tem voz. (grita): VOZ.
O paciente: É problema do maxilar mesmo. Sofri um acidente quando tinha dezenove anos e quebrei o maxilar. Nem tudo é psicológico. Se eu fraturo uma perna e venho aqui depois de algum tempo e reclamo de dor, você vai também me dizer que é psicológico?
A terapeuta: Não tente simplificar as coisas. Quase todas as dores e cãibras têm um fundo psicológico. Vou começar a extrair pela sua boca a maioria dos seus traumas. Olha, você está com um dente cariado, mas isso não é da minha alçada. Eu sou TERAPEUTA. Mantenha a boca aberta.
O paciente: (Fecha a boca) o que você quer extrair de mim?
A terapeuta: Tudo que está bloqueado. (olha dentro da boca). Você respira com dificuldade. Nunca deve ter se revoltado contra os seus pais quando eles lhe disseram: -Cala a boca. Nunca deve ter falado mais alto com o seu patrão.
O paciente: Eu quero falar. É a minha vez.
A terapeuta: (ordena): Cala a boca.
O paciente: Não calo. Quem é você para me mandar calar a boca? Não é meu pai nem minha mãe.
A terapeuta: Confessou. Estamos indo bem. Avançando já na primeira sessão. (olha para a plateia). Foi reprimido na infância. Sempre que fazia uma pergunta, era podado. Não é verdade? Tem coragem de me desmentir?
O paciente: Posso lhe fazer uma pergunta?
A terapeuta: Não. Aqui quem pergunta sou eu. Abra a boca.
O paciente: ( Abre a boca).
A terapeuta(retira algo da boca do cliente): O que é isso?
O paciente: Um fio.
A terapeuta: Não é um fio comum. Um fio dental. É um fio mental.
O paciente: Isso não existe. A senhora está brincando comigo. Fio mental. Só faltava essa? Um fio que me liga aos meus traumas. Que terapeuta original. Pelo menos isso a senhora é.
A terapeuta: Agora me chamou de senhora. Por que esse respeito repentino? Você não me disse que eu não sou nem seu pai nem sua mãe? Reaja. (Abre a boca do paciente e coloca um dedo dentro dela).
(O paciente morde o seu dedo).
A terapeuta: Por que você fez isso? Você não tem direito de me morder.
O paciente: Não falou para eu reagir? Essa fala é perigosa. Nunca diga a um paciente para ele reagir. Se eu estivesse armado, e se eu fosse violento?
A terapeuta: A minha criança está aprendendo. Eu sei lidar com os meus pacientes. E conheço cada um deles já na primeira sessão. Eu nunca falaria para um psicopata reagir. Você não é um deles.
O paciente: Nunca se sabe. (irritado) E eu não sou a sua criança. Sou adulto. Um cara maduro. Consciente de suas responsabilidades. Sou um homem sério.
A terapeuta: A minha criança está reagindo. Diz que não é minha criança. (Para ele) Prova então que não é minha criança.
O paciente: Eu sou um adulto estressado que veio fazer uma consulta para vencer essas angústias naturais nesses tempos tão malucos. Não quero ir a fundo, à infância, mexer com buracos já bem tampados.
A terapeuta: Eles fedem mesmo tampados. E não estão tão bem tampados como você imagina.. Abra a boca. (Olha dentro dela): Você tem mil fossas escuras dentro de você que precisam ser eliminadas, não tampadas.
O paciente (levanta-se): Minha terapeuta fala bonito. É culta. Isso para justificar os 500 reais que eu pago por sessão. Fossas escuras, uma porra. Se eu tenho, você tem também. Você não é melhor nem mais normal do que eu. (pergunta para a plateia). Será que ela é normal? Não sei onde eu li. Alguém disse que de perto ninguém é normal. E ser normal também é o ó.
A terapeuta: Magnífico. Não perdeu a ironia. Quem não consegue ser irônico é porque está morto. O meu paciente está vivo. Eu também estou viva. Nem quero ser normal. A questão não é essa. O importante é se sentir bem, menos angustiado, menos estressado.
O paciente: (concluindo): Se eu estivesse morto, não viria aqui. Os mortos não fazem terapia. A não ser que seja terapia espírita.
A terapeuta: Sente-se.
(O paciente senta-se na cadeira).
A terapeuta: Obediente o meu menino.
O paciente: Fui obediente até os dez anos. Aos 11, me revoltei, mas voltei a ser obediente aos 20 quando me casei. A obediência leva ao comodismo. Nesse país há muitos obedientes. Pagamos altíssimos impostos e na hora que deveria ser de desobedecer, todos pagam como carneirinhos que estivessem próximos da tosquia ou do sacrifício.
A terapeuta: Estamos evoluindo. Abra a boca.
O paciente (levanta-se e ordena): -Fecha a boca. Agora quem fala sou eu. Em casa, só a minha mulher fala. E os meus filhos. No trabalho, sou um mero burocrata. Não tenho poder. Eu vou falar tudo o que eu sinto. Ninguém me segura.
A terapeuta: O que mais te oprime?
O paciente: Não poder ser quem eu sou. Nas reuniões, só digo sim, senhor ao meu chefe. Recebo até que um bom salário, mas não tenho voz. (grita)Eu não tenho voz.
A terapeuta: CALE-SE.
O paciente: Eu não me calo. Quem é você para me dar ordens? É o meu chefe? É só minha terapeuta. SENTE-SE.
(A terapeuta assustada senta-se na cadeira).
ABRA A BOCA. Agora eu é que mando. (tira uma corda da pasta e amarra a terapeuta).
Você é o meu chefe que perdeu a pose e o poder. Ou melhor ainda, você não passa de uma impostora. Papéis invertidos. Eu sou o que está por cima agora. Abra a boca, doutora. (Enfia a mão na sua boca). Que boca úmida. Que boca mais nervosa. Treme sem parar. Até parece que eu sou o terapeuta. Faz de conta que a senhora é minha paciente, quero dizer, você. Como foi a sua infância?
Terapeuta: Foi terrível. (Fala tensa). Fui rejeitada pelos meus pais biológicos. E os pais que me adotaram me tratavam com a máxima frieza.
Paciente: Fale mais, desembucha. Solta tudo.
Terapeuta: Como vou soltar tudo se estou presa? Você me amarrou. E há uma outra prisão que eu não sabia que estava em mim. Está vendo o que você fez? Está me desestruturando. Eu é que sou a terapeuta. Não você. Os meus fantasmas estavam muito bem guardados e você os libertou. E agora?
Paciente: Eu é que pergunto. Parecia tão segura. Querendo extrair o meu íntimo. Toda invasão é perigosa e pode provocar consequências imprevisíveis. Abra a boca.
Terapeuta: Não consigo. Estou travada.
Paciente (ironicamente): É só destravar. Fale mais da sua família, aquela que a adotou. Fale mais, fale mais.
Terapeuta: O meu irmão adotivo tentou me matar, mas eu me vinguei. Coloquei pimenta no sorvete dele.
Paciente: Que crueldade. Que perversidade.
(A terapeuta, de boca aberta, está assustada).
Terapeuta: Você está fora de controle.
Paciente: Agora que eu assumi o controle, você me diz que eu estou fora de controle.
Agora é que eu estou no controle. Prendi aquela que tentou extrair o mais profundo de mim. Conseguiu, mas com consequências. Não se abre um baú velho, que ficou fechado décadas, imaginando que não haja nenhuma aranha caranguejeira ou uma cobra escondida. Todos os bichos guardados, aprisionados, só esperam uma oportunidade para que venham à tona. Eu tenho um zoológico dentro. E você também.
(Começa a declamar):
Cobras, lagartos, serpentes, tigres, elefantes, hipopótamos, rinocerontes, além dos monstros, mulas sem cabeça, dragões, seres imaginários de dez cabeças. Todos temos bichos guardados. Centenas, milhares, milhões. (olha para uma determinada pessoa na plateia).
Você não?
(Ele ordena): Abra a boca.
A Terapeuta: Você está quebrando uma ordem de forma perigosa. Quem deve abrir a boca é você, mas sentado aqui. Não eu. Se eu lhe contar o que foi a minha vida, ficarei totalmente sem força, desprotegida. E sem a minha capa protetora não poderei mais ser a terapeuta. E eu só consigo ser isso. (quase chora): Eu não sirvo para trabalhar em um restaurante como chef, garçonete ou balconista. Eu não sirvo para isso. Só sei ser terapeuta.
Paciente: Ninguém é só terapeuta, ou só engenheiro, ou só funcionário de um escritório, bancário, dentista, médico. Antes de tudo, somos pessoas.
Terapeuta: Fui eu que fiz você descobrir isso.
Paciente: Não, fui eu. Eu é que escolhi vir aqui. Eu é que procurei você. Não foi você que me procurou.
Terapeuta: Me solte agora.
Paciente: Você está solta.
Terapeuta: Você me amarrou.
Paciente (com energia): Mentira. Os terapeutas geralmente são muito mais amarrados e complicados do que os clientes porque carregam consigo histórias que não são as deles e não conseguem processá-las.
Terapeuta: Você está querendo mesmo assumir o meu lugar. Impostor. Invasor. Você já pagou a consulta. Pode ir embora. Eu lhe dou alta.
Paciente: Que maravilha. Uma sessão milagrosa. Mas, se funcionou, fui eu que me curei. Abra a boca.
Terapeuta: Não abro. (olha para o relógio na parede): A sessão terminou. Está na hora do novo paciente chegar.
Paciente( desamarra a terapeuta):Desculpe, eu pensei que ainda tínhamos mais alguns minutos.
Terapeuta ( A terapeuta levanta da cadeira e se recompõe) (cumprimenta-o): Até a próxima sessão.
Paciente: (cumprimenta-a): Até a próxima. (Sai e a terapeuta senta-se na cadeira para relaxar).
(Peça escrita de 23 de agosto a 5 de setembro).
segunda-feira, 22 de agosto de 2011
A CAPIVARA
(A peça começa com um barulho de colisão. No fundo da cena, há uma escultura de papelão simbolizando uma capivara que acabou de ser atropelada. Um homem sai do carro em destroços, ainda assustado, verificando os ferimentos.)
O homem: Uma capivara? Pensei que tivesse atropelado um homem. De onde ela surgiu? Eu estava no máximo a 100 por hora. Dentro do limite. E agora? Como vou avisar a minha mulher que eu vou chegar em casa atrasado? E os meus filhos? Perdi o celular. Estou vivo. Nem acredito.
(Aparece um guarda rodoviário em uma moto).
O guarda: O sr. está multado.
O homem: Eu não tive culpa.
O guarda: E ainda terá que responder por ter matado um animal silvestre protegido pelo Ibama.
O homem: Foi a capivara que entrou na minha frente. Tentei frear, mas capotei. Em vez de o sr. perguntar se eu estou bem, quer proteger a capivara?
O guarda: Aqui é uma área com muitas capivaras. O sr. deveria saber disso e tomar mais cuidado.
O homem: Eu sei, mas como poderia prever que ela iria passar na minha frente? O meu carro não tem radar anticapivara.
O guarda: Mas deveria. Eu posso prendê-lo por desacato à autoridade.
(Uma nova colisão. Aparece mais uma capivara atropelada no meio do palco).
O guarda: O motorista fugiu. (Ao homem): Você anotou a placa? Mais uma capivara inocente morta.
O homem: Essas capivaras são um perigo.
O guarda: Vocês, motoristas, é que são um perigo. Em primeiro lugar, as capivaras.
O homem: Uma família inteira morreu no Paraná após atropelar uma capivara. Eram todos amigos meus. Sete pessoas morreram entre Araras e Rio Claro em janeiro deste ano pelo mesmo motivo. Deveriam matar um certo número de capivaras para evitar mais catástrofes e ainda serviriam como alimento para as pessoas carentes.
O guarda: Que absurdo. Comer capivaras? O sr. comeria um ser humano para matar a sua fome?
O homem: Capivara não é gente.
O guarda: Mas é como se fosse.
O homem: O sr. não come carne de vaca, porco, frango, peixe?
O guarda: É claro, mas capivara não. Capivara é animal silvestre.
O homem: Mas ninguém pensou nisso quando a população aumentou vertiginosamente. O senhor sabia, com todo respeito, que há milhares de capivaras só aqui na região?
O guarda: Por isso mesmo é que merecem proteção.
O homem: E quem protege? O sr. não está me entendendo.
O guarda: Está me chamando de burro, ignorante?
O homem: Não, não é isso.
O guarda: Quase todo mundo quer pôr culpa nas capivaras. As capivaras são animais irracionais. Vocês, motoristas, animais racionais , deveriam pensar antes de atropelá-las.
O homem: Pensar, seu guarda? Se elas surgem de repente do mato, no escuro. Por melhor motorista que eu seja, é impossível.
O guarda: Isso é desculpa.
(Várias colisões acontecem quase simultaneamente, dez capivaras são lançadas ao palco, duas delas caem próximo à plateia).
O homem: Devia ser uma manada.
O guarda: E agora? Não saia daqui. Eu vou providenciar o fechamento do trânsito para evitar matança ainda maior.
(Chega um repórter com uma câmera)
O repórter: Foi o sr. que atropelou todas essas capivaras?
O homem: Eu atropelei uma só. A população de capivaras aumentou muito. Deveria haver um controle. Fora o risco da febre maculosa.
(Um rapaz com um cartaz em que se lê: ASSASSINOS DE CAPIVARA interrompe o homem e começa a falar para a câmera):
Deveriam proibir a circulação de veículos nessa rodovia e em todas as outras em que há capivaras. (voltando-se para o homem): Foi ele que matou todas as capivaras.
(Ouve-se um coro vindo do fundo do palco):
Vamos salvar as capivaras.
Fora, motoristas assassinos.
Fora , civilização dos veículos poluidores.
Vamos salvar as capivaras.
(Dezenas de capivaras de papelão, após uma sequência de colisões, caem sobre o repórter, o ativista, o homem e o guarda que retornou à cena. Somem todos os personagens soterrados pelas capivaras).
(Peça escrita no dia 22-8-2011)
O homem: Uma capivara? Pensei que tivesse atropelado um homem. De onde ela surgiu? Eu estava no máximo a 100 por hora. Dentro do limite. E agora? Como vou avisar a minha mulher que eu vou chegar em casa atrasado? E os meus filhos? Perdi o celular. Estou vivo. Nem acredito.
(Aparece um guarda rodoviário em uma moto).
O guarda: O sr. está multado.
O homem: Eu não tive culpa.
O guarda: E ainda terá que responder por ter matado um animal silvestre protegido pelo Ibama.
O homem: Foi a capivara que entrou na minha frente. Tentei frear, mas capotei. Em vez de o sr. perguntar se eu estou bem, quer proteger a capivara?
O guarda: Aqui é uma área com muitas capivaras. O sr. deveria saber disso e tomar mais cuidado.
O homem: Eu sei, mas como poderia prever que ela iria passar na minha frente? O meu carro não tem radar anticapivara.
O guarda: Mas deveria. Eu posso prendê-lo por desacato à autoridade.
(Uma nova colisão. Aparece mais uma capivara atropelada no meio do palco).
O guarda: O motorista fugiu. (Ao homem): Você anotou a placa? Mais uma capivara inocente morta.
O homem: Essas capivaras são um perigo.
O guarda: Vocês, motoristas, é que são um perigo. Em primeiro lugar, as capivaras.
O homem: Uma família inteira morreu no Paraná após atropelar uma capivara. Eram todos amigos meus. Sete pessoas morreram entre Araras e Rio Claro em janeiro deste ano pelo mesmo motivo. Deveriam matar um certo número de capivaras para evitar mais catástrofes e ainda serviriam como alimento para as pessoas carentes.
O guarda: Que absurdo. Comer capivaras? O sr. comeria um ser humano para matar a sua fome?
O homem: Capivara não é gente.
O guarda: Mas é como se fosse.
O homem: O sr. não come carne de vaca, porco, frango, peixe?
O guarda: É claro, mas capivara não. Capivara é animal silvestre.
O homem: Mas ninguém pensou nisso quando a população aumentou vertiginosamente. O senhor sabia, com todo respeito, que há milhares de capivaras só aqui na região?
O guarda: Por isso mesmo é que merecem proteção.
O homem: E quem protege? O sr. não está me entendendo.
O guarda: Está me chamando de burro, ignorante?
O homem: Não, não é isso.
O guarda: Quase todo mundo quer pôr culpa nas capivaras. As capivaras são animais irracionais. Vocês, motoristas, animais racionais , deveriam pensar antes de atropelá-las.
O homem: Pensar, seu guarda? Se elas surgem de repente do mato, no escuro. Por melhor motorista que eu seja, é impossível.
O guarda: Isso é desculpa.
(Várias colisões acontecem quase simultaneamente, dez capivaras são lançadas ao palco, duas delas caem próximo à plateia).
O homem: Devia ser uma manada.
O guarda: E agora? Não saia daqui. Eu vou providenciar o fechamento do trânsito para evitar matança ainda maior.
(Chega um repórter com uma câmera)
O repórter: Foi o sr. que atropelou todas essas capivaras?
O homem: Eu atropelei uma só. A população de capivaras aumentou muito. Deveria haver um controle. Fora o risco da febre maculosa.
(Um rapaz com um cartaz em que se lê: ASSASSINOS DE CAPIVARA interrompe o homem e começa a falar para a câmera):
Deveriam proibir a circulação de veículos nessa rodovia e em todas as outras em que há capivaras. (voltando-se para o homem): Foi ele que matou todas as capivaras.
(Ouve-se um coro vindo do fundo do palco):
Vamos salvar as capivaras.
Fora, motoristas assassinos.
Fora , civilização dos veículos poluidores.
Vamos salvar as capivaras.
(Dezenas de capivaras de papelão, após uma sequência de colisões, caem sobre o repórter, o ativista, o homem e o guarda que retornou à cena. Somem todos os personagens soterrados pelas capivaras).
(Peça escrita no dia 22-8-2011)
sábado, 20 de agosto de 2011
SOBRE A SOMBRA
Os personagens: um homem e uma mulher, ambos com cerca de quarenta anos, entram no palco quase totalmente escuro ao mesmo tempo, de direções opostas , e se chocam no meio da cena. Ambos caem e em câmara lenta se levantam com uma certa dificuldade, parecendo não compreender o que aconteceu. As luzes se acendem parcialmente, principalmente no centro da cena.)
Ele (um tanto confuso): Você me derrubou.
Ela: Não, foi você.
Ele: Quem é você?
Ela: Não me pergunte isso. E não tenho que lhe dar satisfação.
Ele: (com energia) Você não deveria ter vindo.
Ela: Nem você.
Ele: Mas acontece que estamos aqui e chegamos ao mesmo tempo.
Ela: Você me machucou.
Ele: Você é que me feriu.
Ela: Isso aqui estava um breu. Por que não acenderam a luz para a nossa chegada?
Ele: É que ela não estava prevista. Pelo menos ninguém tinha certeza do horário em que chegaríamos. Não sei direito o que estou dizendo. Também depois desse choque repentino.
Ela: Na verdade, eu estava caminhando há dias para chegar aqui hoje. Mais precisamente, há anos.
Ele: Eu vim de muito mais longe.
Ela: Que pretensão a sua. De onde?
Ele: Como é que vou saber? Não tenho GPS. Vim de uma estrada escura e sem placas de sinalização. Vim dos mais diversos caminhos. Peguei atalhos. Remei em barcos mínimos. Naufraguei. Voltei à tona. Pode ser até que já tenha morrido e esteja numa outra dimensão inexata.
Ela: Você até que é engraçado. Eu tenho uma bússola. (Tira do bolso uma bússola) As bússolas são mais confiáveis do que os GPs.
Ele: Nunca se sabe. Eu vim buscar a minha sombra. O motivo da minha vida é esse. Ela está aqui. (Faz menção de pegar a sua sombra e colá-la ao corpo) . Agora já posso ir embora.
Ela: Esta sombra é minha, não é sua.
Ele: Quem disse que essa sombra é sua?
Ela: Pelo formato.
Ele: Que pretensão. Você chega, quase me derruba e ainda quer roubar a minha sombra? Fique com a sua sombra, não com a minha. As sombras são intransferíveis. Cada um tem a sua.
Ela: Temos que conversar sobre a nossa colisão. Quem paga os estragos?
Ele: Quem paga os estragos? A vida é uma coleção de estragos, de colisões que não terminam , e ainda assim seguimos em frente, olhamos para o abismo e não nos importamos comn ele. Ninguém paga os nossos estragos. O primeiro estrago já acontece no nascimento. Estávamos tão bem situados, aconchegados, quando de repente, nos arrancam da casa-mãe. Nunca nos recuperamos desse despejo, expulsão, deslocamento.
Ela: Como você fala. Você poderia ao menos me dizer o seu nome.
Ele: Antigamente me chamavam de Acho. Depois passaram a me chamar de Acaso. Faz tempo que ninguém me chama. E o seu nome? O meu nome de batismo, esse ficou longe,se perdeu com aquele que esteve tanto tempo amarrado às suas origens.
Ela: Eu tenho vários nomes: Luzia, Maria, Emengarda, Juliana, Teodora, Jacinta, Sabina, Elvira, Alexandra. Mas também ninguém me chama. Ontem, quando vinha para cá, um menino me chamou: -Tia Eulália. Eu me dirigi a ele como se eu fosse a tia Eulália. Quando cheguei mais perto, ele me falou: - Você não é a tia Eulália. Vai embora. Não gosto de você. É simplesmente constrangedor ser chamado de tia por um desconhecido. E, pior ainda, ser rejeitado em seguida.
Ele: Podemos fazer um acordo. Você paga os meus estragos e eu pago os seus.
Ela: Não tenho dinheiro. Os centavos que eu ganhei eu perdi. O ouro que haviam me deixado de herança eu nunca encontrei. Havia só um bilhete esquecido no sótão sobre uma barra de ouro que estaria guardada para mim em um cofre em uma casa que eu nunca achei. Deveriam me indenizar por essa grande encrenca. Passei anos procurando a barra de ouro e fui me destruindo aos poucos, sem encontrar ouro, prata, cobre, lata.
Ele: Como você chegou até aqui?
Ela: Nunca saberei. E também já não importa. O que eu quero é a minha sombra de volta.
Ele: No caminho, encontrei dois homens que brigavam por causa de um cavalo morto. Os dois se diziam donos do cavalo. O cavalo já apodrecia e eles estavam quase se matando, quando continuei a minha caminhada. Não queria ver o desfecho da história.
Ela: Era só uma história ou era um fato?
Ele: Toda história é um fato e todo fato é uma história.
Ela: Nem sempre. Há histórias que nascem da imaginação. E a imaginação não é um fato, mas uma construção sem pé nem cabeça. Quem sabe você não imaginou os dois homens e o cavalo morto?
Ele: Pode ser. Em uma outra estrada, há anos, eu vi um rinoceronte. Mas não poderia ser um rinoceronte já que esses animais não existem por essas bandas. Continuei caminhando e, quando percebi, o rinoceronte foi se tornando uma névoa, uma fumaça que se desfez no espaço. Mas não há nada mais sem pé nem cabeça que o nosso encontro. Você é que deve ser fruto da minha imaginação. Estamos aqui procurando a nossa sombra perdida. Acordei um dia em minha casa e uma força, sei lá, uma energia sem explicação me puxou para cá me dizendo em voz alta: - vá buscar a sombra. Traga a sua sombra de volta. Foi uma mulher que a tirou de você. Isso foi há muito tempo. Desde então a ideia da sombra perdida, roubada, sei lá, me persegue. O meu corpo faz sombra. Mas eu me refiro a uma outra sombra, muito mais enigmática.
Ela: Pare com esse papo de sombra. Sombra infindável , conversa que não explica os absurdos da vida. A sombra que nos assombra. (Ri). A sombra nos impede de enxergar melhor.
Ele: O ponto crucial é que nos encontramos sem mais nem menos, nos chocamos sem mais nem menos e não sabemos a razão de estarmos aqui. Provavelmente, você deixou família e se aventurou nessa empreitada estranha. Não quero saber a sua história. Nem conto a minha. A sombra é grande, imensa e cobre todos os humanos que pensam.
Ela: (irônica) Então você está livre desse peso.
Ele: Inteligente é você. Ou indigente? Fiz faculdade de direito, trabalhei dez anos como advogado até que resolvi largar tudo e começar a fazer trilha de jipe,moto. Agora estou a pé.
Ela: Foi assaltado?
Ele: Umas vinte vezes.
Ela: E não reagiu?
Ele: Sem reagir, me pegaram, me torturaram, mas me recuso a recuar e retornar à antiga vida confortável na cidade, com uma família. A minha mulher me corneou com um cara mais novo. Ela dizia que eu não dava no couro. Aí, para não matá-la, que não é a minha praia esse lance de me vingar de traição, resolvi sair por aí, sem rumo, e tô nessa já há uns cinco anos. Hoje, encontro você, e nós dois delirando procuramos sombras e mais sombras que não param de se reproduzir.
Ela: Estou gostando desse delírio. Você não tem algo para comermos?
Ele: Só um pedaço de frango, uma coxa. (Dá a ela a coxa de frango).
Ela: E você?
Ele: Estou bem alimentado. Coma sem medo. Deve ter uns três dias.
Ela: Para quem não come há uma semana é uma coxa nova, assada agora mesmo. (Come com prazer e voracidade).
Ele: Uma coxa velha de frango para quem está com fome tem sabor de um prato nobre: um faisão.
Ela: As coxas de faisão têm pouca carne. Eu já comi faisão no meu tempo de boa filha, comportada. Estudei em colégio de freiras. Também fiz faculdade. Namorei, casei, o meu marido era executivo de uma multinacional e nem se importava comigo. Só pensava em comprar carro novo, comer nos melhores restaurantes, mas nunca me disse que me amava e nem perguntava o que eu pensava sobre os mais diversos temas. Trazia para mim tudo pronto e rápido. Foi um casamento fast-food. Eu me enjoei. Prefiro essa coxa de frango que você me deu.
Ele: É hora de ir embora.
Ela: Para onde?
Ele: Se não foi você que roubou a minha sombra, tenho que ir procurar em outro lugar até que a encontre.
Ela: Você também não tem jeito de ladrão de sombra.
Ele: O que mais me perturba é descobrir que existe uma pessoa além de mim procurando a sua sombra.
Ela: Isso de fato é perturbador.
Ele: Há os que não procuram. Talvez seja pior. Não procurar. Conformar-se com a sombra que se perdeu, com o rosto que se perdeu na infância e nunca mais foi buscado ou encontrado.
Ela: Eu estava perdida antes. Tudo foi preparado para mim. A princesinha. A princesinha hoje está com quarenta anos e só agora está tentando recuperar a identidade.
Ele: Qual é o seu nome mesmo?
Ela: Estou quase chegando nele. E o seu?
Ele: Que importa um nome se ele não passa de uma casca, de uma embalagem que nos identifica na hora de preencher o cheque. Cheque? Ainda existem cheques? Ou só cartões?
Ela: Cartões e senhas. Qual é a sua senha para entrar aqui?
Ele: Esqueci. Deve ser: 00000000 ou será 111111111?
Ela: Senha muito fácil esta. Os ladrões não terão dificuldade em descobri-la.
Ele: Perdi a senha.
Ela: Eu também não tenho senha. Sem nome e sem senha. Estamos bem arranjados.
Ele: Quem não tem senha está perdido. Esqueci a minha senha desde que nasci.
Ela: Por acaso você nasceu com senha? Na maternidade, colocaram uma pulseirinha no meu braço. Lá deveria haver um número. Essa talvez fosse a minha senha. Mas não me lembro.
Ele: Tal seria se lembrasse. Todas as senhas são formas de nos aprisionar. E sem senha também estamos presos.
Ela: Talvez estejamos chegando ao ponto. As senhas são sombras, mas sem senhas e nomes não existimos.
Ele: Quando fui estudar direito, eu pretendia na verdade fazer teatro. Não fui porque o meu pai e a minha mãe foram contra. Eu cedi.
Ela: Quem cede uma vez cede sempre. A não ser que fuja. Jogue tudo para o alto: as senhas, o futuro, o presente, o passado, tudo que foi feito sem que nos consultassem.
Ele: Você se sente vazia?
Ela: Às vezes. Só as palavras me preenchem. Conheci um homem de mais de 90 anos, que havia perdido totalmente a memória, mas que não parava de falar. Ele dizia: O mundo acabou, não , o mundo está só iniciando um novo ciclo. A vida é estranha. E ia por aí afora falando, falando, falando, até adormecer. Quando a enfermeira aparecia para lhe servir o café, ele dizia: -Você é a minha mãe. Não quero café. Quero mamar nos seus seios. E fazia menção de pegar nos seios da enfermeira. Ela ria e lhe dava o café. E ele tomava cada gole, abrindo e fechando a boca como se sugasse os seios de sua mãe. (Imita o homem de 90 anos).
Ele: Que história mais estapafúrdia.
Ela: Não mais do que a nossa. Entre perder a sombra e perder a memória, não sei o que é pior.
Ele: Perder a memória é pior. Já não sei. Esqueci.
Ela: Quem não esquece vive a maior parte da vida magoado. Minha avó sempre dizia que mágoa dá câncer.
Ele: Do que ela morreu?
Ela: De câncer.
Ele: E ela tinha mágoa de alguém?
Ela: De todos. Principalmente do meu avô que a deixou com dois filhos pequenos e se casou com a secretária. Ele o amaldiçoou até a morte. Mágoa mata. A minha avó bebeu do próprio veneno.
Ele: Você existe mesmo?
Ela: Como é que eu vou saber?
Ele: Estamos sobre ou sob uma sombra? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?
Ela: As sombras crescem sobre nós à medida que nos enredamos no nosso labirinto. Provavelmente não há saída. Um labirinto dá para outro labirinto que dá para outro e, algumas vezes, nos iludimos achando que estamos livres dele, mas eis que surge um outro labirinto na próxima esquina e de novo nos fecha. Talvez você seja o meu novo labirinto, o labirinto desta hora.
Ele: Por que justo eu? Eu não a chamei, eu não a iludi, eu não a atraí para cá.
Ela: Mas as coisas se dão sem que se planeje nada.
Ele: De novo esse papo de acaso?
Ela: Não sei se é acaso. Só sei que estamos aqui neste instante tenso.
Ele: Você é que está me deixando tenso.
Ela: A tensão é a nossa força. É como um bicho dentro do meu estômago. Um bicho que quer me comer, mas eu reajo. Um bicho, uma fera, uma estranha força que me acompanha e que de repente cresce, me toma por inteira, sai de mim, ganha espaço na casa, na rua, no mundo.
Ele: Eu não sei mais o que eu sinto. É uma sensação indizível. Pode ser o tal labirinto que está dentro de mim.
Ela: Não há fuga possível. Viemos para o mesmo ponto porque essa sombra, essa mancha, esse mistério nos atraíram para cá.
Ele: Quem disse que eu quero fugir? A primeira fuga : do trabalho, da vida planejada, tediosa, repetitiva na verdade foi uma libertação. Caí no vazio. Mas antes o vazio que o cheio sem conteúdo.
Ela: Porra, chega de filosofar. Estamos encrencados, enrolados num papo maluco e sem solução.
(Começa uma coreografia estranha. Os dois corpos se tocam no meio do palco como numa dança suave. Parecem bonecos dançando. Corpos e sombras se misturam. Os corpos continuam muito próximos um do outro).
Ele: E agora? Deixei o casamento para ficar livre.
Ela: E eu que não me casei pelo mesmo motivo. Será que você é a minha sina?
Ele: Vai embora.
Ela: Vai você antes.
Ele: Por que não pode ser você?
Ela: Viemos para o mesmo ponto resgatar a nossa sombra e não é que nos colamos, nops prendemos de uma maneira estranha?
Ele: É isso que acontece com a maioria dos casais. Eles, depois de anos juntos, simplesmente se colam, se tornam um só ou nenhum.
Ela: Pensando bem, se já não temos identidade, que diferença faz sermos um, dois ou nenhum?
Ele: E eu é que queria filosofar? Estou indo. Vou por aí sem rumo como tem sido sempre a minha vida.
Ela: Posso ir com você?
Ele: Quem carrega as malas?
Ela: Você não tem mala. Nem eu.
Ele: É melhor assim. Vida leve, sem mala, sem sombra.
Ela: Eu não faço sombra para você e você não faz sombra para mim.
Ele: Aí até podemos pensar em caminharmos juntos. Sem sombra. Sem fantasmas. As pessoas em geral são especialistas em criar fantasmas. Eu já destruí quase todos os meus.
Ela: Mas os fantasmas e os monstrinhos têm uma capacidade de se reproduzir quase infinita. Para que eles não nasçam em grande escala, é só não pensar neles.
Ele: Pensar demais mata.
Ela: Vamos.
Ele: Em que direção?
Ela: Pode ser por ali.
Ele: Então, vamos. Mas sem pressa. Não temos hora marcada nem no dentista nem no cardiologista.
Ela: E eu não marquei com o cabeleireiro.
Ele: Então podemos ir.
Ela: Sem sombra. Sobre ou sob nós.
(Caminham lado a lado, sem nenhuma pressa. Saem do palco. O palco se ilumina na sua totalidade).
(De 20 a 22 de agosto. Escrita em três dias).
Ele (um tanto confuso): Você me derrubou.
Ela: Não, foi você.
Ele: Quem é você?
Ela: Não me pergunte isso. E não tenho que lhe dar satisfação.
Ele: (com energia) Você não deveria ter vindo.
Ela: Nem você.
Ele: Mas acontece que estamos aqui e chegamos ao mesmo tempo.
Ela: Você me machucou.
Ele: Você é que me feriu.
Ela: Isso aqui estava um breu. Por que não acenderam a luz para a nossa chegada?
Ele: É que ela não estava prevista. Pelo menos ninguém tinha certeza do horário em que chegaríamos. Não sei direito o que estou dizendo. Também depois desse choque repentino.
Ela: Na verdade, eu estava caminhando há dias para chegar aqui hoje. Mais precisamente, há anos.
Ele: Eu vim de muito mais longe.
Ela: Que pretensão a sua. De onde?
Ele: Como é que vou saber? Não tenho GPS. Vim de uma estrada escura e sem placas de sinalização. Vim dos mais diversos caminhos. Peguei atalhos. Remei em barcos mínimos. Naufraguei. Voltei à tona. Pode ser até que já tenha morrido e esteja numa outra dimensão inexata.
Ela: Você até que é engraçado. Eu tenho uma bússola. (Tira do bolso uma bússola) As bússolas são mais confiáveis do que os GPs.
Ele: Nunca se sabe. Eu vim buscar a minha sombra. O motivo da minha vida é esse. Ela está aqui. (Faz menção de pegar a sua sombra e colá-la ao corpo) . Agora já posso ir embora.
Ela: Esta sombra é minha, não é sua.
Ele: Quem disse que essa sombra é sua?
Ela: Pelo formato.
Ele: Que pretensão. Você chega, quase me derruba e ainda quer roubar a minha sombra? Fique com a sua sombra, não com a minha. As sombras são intransferíveis. Cada um tem a sua.
Ela: Temos que conversar sobre a nossa colisão. Quem paga os estragos?
Ele: Quem paga os estragos? A vida é uma coleção de estragos, de colisões que não terminam , e ainda assim seguimos em frente, olhamos para o abismo e não nos importamos comn ele. Ninguém paga os nossos estragos. O primeiro estrago já acontece no nascimento. Estávamos tão bem situados, aconchegados, quando de repente, nos arrancam da casa-mãe. Nunca nos recuperamos desse despejo, expulsão, deslocamento.
Ela: Como você fala. Você poderia ao menos me dizer o seu nome.
Ele: Antigamente me chamavam de Acho. Depois passaram a me chamar de Acaso. Faz tempo que ninguém me chama. E o seu nome? O meu nome de batismo, esse ficou longe,se perdeu com aquele que esteve tanto tempo amarrado às suas origens.
Ela: Eu tenho vários nomes: Luzia, Maria, Emengarda, Juliana, Teodora, Jacinta, Sabina, Elvira, Alexandra. Mas também ninguém me chama. Ontem, quando vinha para cá, um menino me chamou: -Tia Eulália. Eu me dirigi a ele como se eu fosse a tia Eulália. Quando cheguei mais perto, ele me falou: - Você não é a tia Eulália. Vai embora. Não gosto de você. É simplesmente constrangedor ser chamado de tia por um desconhecido. E, pior ainda, ser rejeitado em seguida.
Ele: Podemos fazer um acordo. Você paga os meus estragos e eu pago os seus.
Ela: Não tenho dinheiro. Os centavos que eu ganhei eu perdi. O ouro que haviam me deixado de herança eu nunca encontrei. Havia só um bilhete esquecido no sótão sobre uma barra de ouro que estaria guardada para mim em um cofre em uma casa que eu nunca achei. Deveriam me indenizar por essa grande encrenca. Passei anos procurando a barra de ouro e fui me destruindo aos poucos, sem encontrar ouro, prata, cobre, lata.
Ele: Como você chegou até aqui?
Ela: Nunca saberei. E também já não importa. O que eu quero é a minha sombra de volta.
Ele: No caminho, encontrei dois homens que brigavam por causa de um cavalo morto. Os dois se diziam donos do cavalo. O cavalo já apodrecia e eles estavam quase se matando, quando continuei a minha caminhada. Não queria ver o desfecho da história.
Ela: Era só uma história ou era um fato?
Ele: Toda história é um fato e todo fato é uma história.
Ela: Nem sempre. Há histórias que nascem da imaginação. E a imaginação não é um fato, mas uma construção sem pé nem cabeça. Quem sabe você não imaginou os dois homens e o cavalo morto?
Ele: Pode ser. Em uma outra estrada, há anos, eu vi um rinoceronte. Mas não poderia ser um rinoceronte já que esses animais não existem por essas bandas. Continuei caminhando e, quando percebi, o rinoceronte foi se tornando uma névoa, uma fumaça que se desfez no espaço. Mas não há nada mais sem pé nem cabeça que o nosso encontro. Você é que deve ser fruto da minha imaginação. Estamos aqui procurando a nossa sombra perdida. Acordei um dia em minha casa e uma força, sei lá, uma energia sem explicação me puxou para cá me dizendo em voz alta: - vá buscar a sombra. Traga a sua sombra de volta. Foi uma mulher que a tirou de você. Isso foi há muito tempo. Desde então a ideia da sombra perdida, roubada, sei lá, me persegue. O meu corpo faz sombra. Mas eu me refiro a uma outra sombra, muito mais enigmática.
Ela: Pare com esse papo de sombra. Sombra infindável , conversa que não explica os absurdos da vida. A sombra que nos assombra. (Ri). A sombra nos impede de enxergar melhor.
Ele: O ponto crucial é que nos encontramos sem mais nem menos, nos chocamos sem mais nem menos e não sabemos a razão de estarmos aqui. Provavelmente, você deixou família e se aventurou nessa empreitada estranha. Não quero saber a sua história. Nem conto a minha. A sombra é grande, imensa e cobre todos os humanos que pensam.
Ela: (irônica) Então você está livre desse peso.
Ele: Inteligente é você. Ou indigente? Fiz faculdade de direito, trabalhei dez anos como advogado até que resolvi largar tudo e começar a fazer trilha de jipe,moto. Agora estou a pé.
Ela: Foi assaltado?
Ele: Umas vinte vezes.
Ela: E não reagiu?
Ele: Sem reagir, me pegaram, me torturaram, mas me recuso a recuar e retornar à antiga vida confortável na cidade, com uma família. A minha mulher me corneou com um cara mais novo. Ela dizia que eu não dava no couro. Aí, para não matá-la, que não é a minha praia esse lance de me vingar de traição, resolvi sair por aí, sem rumo, e tô nessa já há uns cinco anos. Hoje, encontro você, e nós dois delirando procuramos sombras e mais sombras que não param de se reproduzir.
Ela: Estou gostando desse delírio. Você não tem algo para comermos?
Ele: Só um pedaço de frango, uma coxa. (Dá a ela a coxa de frango).
Ela: E você?
Ele: Estou bem alimentado. Coma sem medo. Deve ter uns três dias.
Ela: Para quem não come há uma semana é uma coxa nova, assada agora mesmo. (Come com prazer e voracidade).
Ele: Uma coxa velha de frango para quem está com fome tem sabor de um prato nobre: um faisão.
Ela: As coxas de faisão têm pouca carne. Eu já comi faisão no meu tempo de boa filha, comportada. Estudei em colégio de freiras. Também fiz faculdade. Namorei, casei, o meu marido era executivo de uma multinacional e nem se importava comigo. Só pensava em comprar carro novo, comer nos melhores restaurantes, mas nunca me disse que me amava e nem perguntava o que eu pensava sobre os mais diversos temas. Trazia para mim tudo pronto e rápido. Foi um casamento fast-food. Eu me enjoei. Prefiro essa coxa de frango que você me deu.
Ele: É hora de ir embora.
Ela: Para onde?
Ele: Se não foi você que roubou a minha sombra, tenho que ir procurar em outro lugar até que a encontre.
Ela: Você também não tem jeito de ladrão de sombra.
Ele: O que mais me perturba é descobrir que existe uma pessoa além de mim procurando a sua sombra.
Ela: Isso de fato é perturbador.
Ele: Há os que não procuram. Talvez seja pior. Não procurar. Conformar-se com a sombra que se perdeu, com o rosto que se perdeu na infância e nunca mais foi buscado ou encontrado.
Ela: Eu estava perdida antes. Tudo foi preparado para mim. A princesinha. A princesinha hoje está com quarenta anos e só agora está tentando recuperar a identidade.
Ele: Qual é o seu nome mesmo?
Ela: Estou quase chegando nele. E o seu?
Ele: Que importa um nome se ele não passa de uma casca, de uma embalagem que nos identifica na hora de preencher o cheque. Cheque? Ainda existem cheques? Ou só cartões?
Ela: Cartões e senhas. Qual é a sua senha para entrar aqui?
Ele: Esqueci. Deve ser: 00000000 ou será 111111111?
Ela: Senha muito fácil esta. Os ladrões não terão dificuldade em descobri-la.
Ele: Perdi a senha.
Ela: Eu também não tenho senha. Sem nome e sem senha. Estamos bem arranjados.
Ele: Quem não tem senha está perdido. Esqueci a minha senha desde que nasci.
Ela: Por acaso você nasceu com senha? Na maternidade, colocaram uma pulseirinha no meu braço. Lá deveria haver um número. Essa talvez fosse a minha senha. Mas não me lembro.
Ele: Tal seria se lembrasse. Todas as senhas são formas de nos aprisionar. E sem senha também estamos presos.
Ela: Talvez estejamos chegando ao ponto. As senhas são sombras, mas sem senhas e nomes não existimos.
Ele: Quando fui estudar direito, eu pretendia na verdade fazer teatro. Não fui porque o meu pai e a minha mãe foram contra. Eu cedi.
Ela: Quem cede uma vez cede sempre. A não ser que fuja. Jogue tudo para o alto: as senhas, o futuro, o presente, o passado, tudo que foi feito sem que nos consultassem.
Ele: Você se sente vazia?
Ela: Às vezes. Só as palavras me preenchem. Conheci um homem de mais de 90 anos, que havia perdido totalmente a memória, mas que não parava de falar. Ele dizia: O mundo acabou, não , o mundo está só iniciando um novo ciclo. A vida é estranha. E ia por aí afora falando, falando, falando, até adormecer. Quando a enfermeira aparecia para lhe servir o café, ele dizia: -Você é a minha mãe. Não quero café. Quero mamar nos seus seios. E fazia menção de pegar nos seios da enfermeira. Ela ria e lhe dava o café. E ele tomava cada gole, abrindo e fechando a boca como se sugasse os seios de sua mãe. (Imita o homem de 90 anos).
Ele: Que história mais estapafúrdia.
Ela: Não mais do que a nossa. Entre perder a sombra e perder a memória, não sei o que é pior.
Ele: Perder a memória é pior. Já não sei. Esqueci.
Ela: Quem não esquece vive a maior parte da vida magoado. Minha avó sempre dizia que mágoa dá câncer.
Ele: Do que ela morreu?
Ela: De câncer.
Ele: E ela tinha mágoa de alguém?
Ela: De todos. Principalmente do meu avô que a deixou com dois filhos pequenos e se casou com a secretária. Ele o amaldiçoou até a morte. Mágoa mata. A minha avó bebeu do próprio veneno.
Ele: Você existe mesmo?
Ela: Como é que eu vou saber?
Ele: Estamos sobre ou sob uma sombra? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?
Ela: As sombras crescem sobre nós à medida que nos enredamos no nosso labirinto. Provavelmente não há saída. Um labirinto dá para outro labirinto que dá para outro e, algumas vezes, nos iludimos achando que estamos livres dele, mas eis que surge um outro labirinto na próxima esquina e de novo nos fecha. Talvez você seja o meu novo labirinto, o labirinto desta hora.
Ele: Por que justo eu? Eu não a chamei, eu não a iludi, eu não a atraí para cá.
Ela: Mas as coisas se dão sem que se planeje nada.
Ele: De novo esse papo de acaso?
Ela: Não sei se é acaso. Só sei que estamos aqui neste instante tenso.
Ele: Você é que está me deixando tenso.
Ela: A tensão é a nossa força. É como um bicho dentro do meu estômago. Um bicho que quer me comer, mas eu reajo. Um bicho, uma fera, uma estranha força que me acompanha e que de repente cresce, me toma por inteira, sai de mim, ganha espaço na casa, na rua, no mundo.
Ele: Eu não sei mais o que eu sinto. É uma sensação indizível. Pode ser o tal labirinto que está dentro de mim.
Ela: Não há fuga possível. Viemos para o mesmo ponto porque essa sombra, essa mancha, esse mistério nos atraíram para cá.
Ele: Quem disse que eu quero fugir? A primeira fuga : do trabalho, da vida planejada, tediosa, repetitiva na verdade foi uma libertação. Caí no vazio. Mas antes o vazio que o cheio sem conteúdo.
Ela: Porra, chega de filosofar. Estamos encrencados, enrolados num papo maluco e sem solução.
(Começa uma coreografia estranha. Os dois corpos se tocam no meio do palco como numa dança suave. Parecem bonecos dançando. Corpos e sombras se misturam. Os corpos continuam muito próximos um do outro).
Ele: E agora? Deixei o casamento para ficar livre.
Ela: E eu que não me casei pelo mesmo motivo. Será que você é a minha sina?
Ele: Vai embora.
Ela: Vai você antes.
Ele: Por que não pode ser você?
Ela: Viemos para o mesmo ponto resgatar a nossa sombra e não é que nos colamos, nops prendemos de uma maneira estranha?
Ele: É isso que acontece com a maioria dos casais. Eles, depois de anos juntos, simplesmente se colam, se tornam um só ou nenhum.
Ela: Pensando bem, se já não temos identidade, que diferença faz sermos um, dois ou nenhum?
Ele: E eu é que queria filosofar? Estou indo. Vou por aí sem rumo como tem sido sempre a minha vida.
Ela: Posso ir com você?
Ele: Quem carrega as malas?
Ela: Você não tem mala. Nem eu.
Ele: É melhor assim. Vida leve, sem mala, sem sombra.
Ela: Eu não faço sombra para você e você não faz sombra para mim.
Ele: Aí até podemos pensar em caminharmos juntos. Sem sombra. Sem fantasmas. As pessoas em geral são especialistas em criar fantasmas. Eu já destruí quase todos os meus.
Ela: Mas os fantasmas e os monstrinhos têm uma capacidade de se reproduzir quase infinita. Para que eles não nasçam em grande escala, é só não pensar neles.
Ele: Pensar demais mata.
Ela: Vamos.
Ele: Em que direção?
Ela: Pode ser por ali.
Ele: Então, vamos. Mas sem pressa. Não temos hora marcada nem no dentista nem no cardiologista.
Ela: E eu não marquei com o cabeleireiro.
Ele: Então podemos ir.
Ela: Sem sombra. Sobre ou sob nós.
(Caminham lado a lado, sem nenhuma pressa. Saem do palco. O palco se ilumina na sua totalidade).
(De 20 a 22 de agosto. Escrita em três dias).
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